terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Consolação



Mandou-me este email o meu filho João.

«ESTA VALE A PENA DIVULGAR!!! é uma verdadeira  vergonha... »

«...batendo as asas pela noite calada... vêm em bandos, com pés de veludo...» Os Vampiros do Século XXI:

 A Caixa Geral de Depósitos (CGD) está a enviar aos seus clientes mais modestos uma circular que deveria fazer  corar de vergonha os administradores - principescamente pagos - daquela instituição bancária.

 A carta da CGD começa, como mandam as boas regras de marketing, por reafirmar o empenho do Banco em  oferecer aos seus clientes as melhores condições de preço qualidade em toda a gama de prestação de serviços, incluindo no que respeita a despesas de manutenção nas contas à ordem.

 As palavras de circunstância não chegam sequer a suscitar qualquer tipo de ilusões, dado que após novo parágrafo sobre racionalização e eficiência da gestão de contas, o estimado/a cliente é confrontado com a informação de que, para continuar a usufruir da isenção da comissão de despesas de manutenção, terá de ter em cada trimestre um saldo médio superior a EUR1000, ter crédito de vencimento ou ter aplicações financeiras associadas à respectiva conta.

 Ora sucede que muitas contas da CGD, designadamente de pensionistas e reformados, são abertas por imposição legal.  É o caso de um reformado por invalidez e quase septuagenário, que sobrevive com uma pensão de EUR 243,45 - que para ter direito ao piedoso subsídio diário de EUR 7,57 (sete euros e cinquenta e sete cêntimos!) foi forçado a abrir conta na CGD por determinação expressa da  Segurança Social para receber a reforma.

 Como se compreende, casos como este - e muitos são os portugueses que vivem abaixo ou no limiar da pobreza - não podem, de todo, preencher os requisitos impostos pela CGD e tão pouco dar-se ao luxo de pagar despesas de manutenção de uma conta que foram constrangidos a abrir para acolher a sua miséria.

 O mais escandaloso é que seja justamente uma instituição bancária que ano após ano apresenta lucros fabulosos e que aposenta os seus administradores, mesmo  quando efémeros, com «obscenas» pensões (para citar Bagão Félix), a vir exigir a quem mal consegue sobreviver  que contribua para engordar os seus lautos proventos.

É sem dúvida uma situação ridícula e vergonhosa, como lhe chama o nosso leitor, mas as palavras sabem a pouco quando se trata de denunciar tamanha indignidade.

 Esta é a face brutal do capitalismo selvagem que nos servem sob a capa da democracia, em que até a esmola paga taxa.  Sem respeito pela dignidade humana e sem qualquer resquício de decência, com o único objectivo de acumular  mais e mais lucros, eis os administradores de sucesso.

 Medita e divulga... Mas divulga mesmo por favor... Cidadania é fazê-lo, é demonstrar esta pouca vergonha que nos atira para a miserabilidade social.
 Este tipo de comentário não aparece nos jornais, tv's e rádios... Porque será???
 Eu já fiz a minha parte. Faz a tua.»

Sem comentário pessoal, lembrei-me apenas do soneto ”O dia em que nasci” de Camões, mas também da «Consolação às Tribulações de Israel» do nosso judeu Samuel Usque, de que li partes outrora e que agora transcrevo da Internet. Servem apenas para nos deslumbrarmos, consolando-nos com o paralelo que podemos estabelecer entre o outrora e o agora, este cada vez mais prosaico. E não menos vil.
Leiamos o poema-canto da personagem Icabo:

«Ó mundo, mundo, / já que tuas racionais criaturas / não consentes se doam de minhas tribulações e lazeiras, / se nas insensíveis / influirão os céus algum modo secreto de piedade, / dá licença aos rios / que d’altas montanhas com espantoso rumor / vêm quebrar suas escumosas águas em baixo,  / que detendo o seu arrebatado passo, / com manso e lamentoso ruído / acompanhem o contínuo curso de minhas lágrimas, / e em seu correr cansado, / mostrem novo sentimento / de minhas longas  misérias! / E vós outros, / príncipes de todos eles, / Nilo, Ganges, Eufrates, Tigre, / que, desatando-vos do paraíso terrestre, / desenfreados vindes abrevar / os sequiosos Egípcios, / os moles e cheiros Índios / e, torcendo o passo, / escondendo-vos nas áreas por muitos dias, / saís depois a mostrar-vos / aos bárbaros e queimados Guinéus / e subindo e descendo / por ásperos e montanhosos desertos / ides também saudar / os guerreiros e cruéis Tártaros pois lá vos comunicais/ co aquele tão desejado mensageiro / que em carro e cavalos de fogo arrebatado / foi levado aos céus, / rogo-vos que aqui manso me digais este segredo: /   Quando cansarão meus males e fadigas, / minhas injúrias e ofensas, / minhas saudades e misérias, / as feridas n’alma e minhas mágoas, / as bem-aventuranças em sonhos, / as desaventuras certas, os males presentes / e esperanças longas e tão cansadas?! / E quando terá paz tanta guerra / contra um fraco sujeito, / temor, suspeita, receios / de minhas entranhas?! /  Até quando gemerei, suspirarei, / matarei a sede / com as lágrimas de meus olhos?!  (in «Consolação às tribulações de Israel», por Samuel Usque

Leiamos Camões:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

                     Luís de Camões

Não nos espantemos, pois.

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