Curioso este artigo “Cunhas
públicas” de José Pacheco Pereira, sobretudo no contraditório dos
sentimentos expressos: na primeira cunha pública, a costumeira
agressividade com Passos Coelho, mesmo que ele continue impávido – ou talvez
por isso – a erguer a voz sem desfalecer, ciente do que significou para ele a
proeza de gerir uma nação esfarrapada e endividada, que as gentes que apoiam o
actual governo tratavam de esgaçar e endividar ainda mais, nas suas marchas
gritadas de raivas incontidas, indiferentes ao percurso que nos fizera chegar
até aí, todos sofrendo e comendo por tabela com mais ou menos resignação, uns
com ódio, outros com compreensão. Pacheco Pereira foi o profeta da desgraça que
nunca poupou Passos Coelho, nem mesmo hoje, que está tão diminuído nas
sondagens, que todos nós o que desejamos é bom trato sem esforço de maior. E
ainda agora, em que um primeiro ministro vai sobrevivendo e conquistando as
simpatias retiradas a Passos Coelho, por estar numa de recomposição social
aparente - e que nos parece antes de resvalamento pelo desfiladeiro, pois que
existe uma dívida que vai aumentando, atamancada em truques e sorrisos de
promessas ministeriais, truques que fingimos ignorar por conveniência calaceira
e batoteira em que somos peritos - José Pacheco Pereira continua a zurzir em
Passos Coelho, ridiculamente preocupado com a documentação referente à
participação da Troika por cá, quando parece indiferente aos esquemas participativos
de membros governativos passados e presentes de que os Tribunais se têm bastas
vezes de ocupar – ou de fingir que o fazem. Não contente com o clima de
impostura e falcatrua que percorre, dum modo geral, a nossa governação de
compadrios, quer mais um réu para o seu júbilo pregador da justiça – o réu do
seu apreço.
Mas a segunda cunha
é do âmbito patrioteiro, que nem me parece mais resultar senão do desejo de
exibir os seus muitos conhecimentos de ledor profuso e profundo, pois que nunca
me pareceu assim tão amante da pátria, a não ser para contrariar todos os temas
em que toca para exibir originalidade e, tantas vezes, um vão saber.
Quanto
à terceira cunha, com cuja argumentação me identifico, todavia, só
me pergunto se, sendo Maria José Moura figura de poder, ainda que com
igual papel de difusora de livros para a difusão da cultura – ou apenas para
contribuir para a alfabetização de um povo restrito nela – José Pacheco Pereira
correria tão gentilmente a propor-lhe o nome para uma biblioteca. E relembro,
uma vez mais, como paralelo de atitude generosa, esse que tanto sabia e era
modesto na sua autocrítica, de um saber humanista adaptável a todas as
situações, tal como a este caso de inesperada bondade:
«Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se
lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante,
dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde
trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).» Álvaro de Campos
Cunhas públicas
José Pacheco Pereira
Público,
26/11/16
Para a história futura é muito relevante saber, por
exemplo, quem propôs determinadas medidas na anterior legislatura, o Governo ou
a troika?
Primeira
cunha: esclarecer-nos sobre as actas e outros documentos
relativos às relações do Governo português com a troika.
Já
não é a primeira vez que falo disto e não será a última: no que diz respeito
ao registo e arquivamento de todos os documentos, e-mails, actas, protocolos,
relatórios, resumos de telefonemas, relativos aos quatro anos de relações entre
o Governo português e a troika ou as suas componentes, está tudo devidamente
conservado como é suposto e a lei obriga, aos documentos do Estado? Está? Tudo?

É
que se não está, temos um problema de legalidade e mais do que isso, que já não
é pouco, temos um problema de escrutínio dos actos do Governo e de
transparência. Repare-se que não estou a dizer que tais documentos possam
de imediato ser públicos, ou pelo menos parte deles. O que digo é que gostaria
de ser esclarecido se eles estão devidamente acautelados. É que para a história
futura é muito relevante saber, por exemplo, quem propôs determinadas medidas
na anterior legislatura, o Governo ou a troika? Que discussões existiram
sobre a política fiscal, como foram justificados falhanços e elogiados sucessos?
O que disse a troika sobre alguns processos de privatizações? É que sabemos
muito pouco sobre o nosso processo de “ajustamento”, já sabíamos pouco sobre o
que Merkel combinou com Sócrates, como foi feito o memorando, quem disse o quê,
quem pediu à troika para incluir esta ou aquela medida, por aí adiante.
Segunda cunha: dar mais nomes
portugueses a corpos celestes.
Existem
regras internacionais e um instituição tutelar (a União Astronómica
Internacional) que define as regras da nomenclatura de corpos celestes, assim
como das suas crateras, desfiladeiros, oceanos lagos, vulcões, etc. Há
já em vários corpos celestes como a Lua, nomes portugueses, mas eles
continuam a ser muito escassos. Em Portugal, a Sociedade Portuguesa de
Astronomia já animou várias iniciativas no sentido de dar nomes portugueses,
junto com outras organizações ligadas à astronomia. Em 2015 houve uma
proposta para nomear a estrela Mu Arae, bem próximo de nós, de Lusitânia e os
planetas recentemente descobertos nesse sistema, de Caravela, Adamastor,
Esperança e Saudade. Como estas propostas foram votadas, os espanhóis com
nomes de personagens do D. Quixote de Cervantes, “ganharam”. Os nomes
portugueses também não eram brilhantes, nem muito originais, com excepção de
Adamastor que é um bom nome para um planeta que sabemos existir, mas nunca
“vimos”. Nomes de cientistas, navegadores (alguns já lá estão), ou, como no
caso espanhol, autores e personagens de ficção. “Velhos do Restelo”, uma das
personagens mais interessantes dos Lusíadas, que todos referem sem saber o que
Camões dele diz, é um bom nome. E não colhe a eventual dificuldade
da pronunciação, como se vê com o cometa com o nome amável de
67P/Churyumov-Gerasimenko.
Não
é por qualquer razão de nacionalismo barato que meto esta “cunha” de
perseverança na nomenclatura portuguesa, mas porque este aspecto simbólico é
muito importante para mobilizar a curiosidade e por ela o interesse pela
ciência.
Terceira cunha: uma biblioteca para Maria
José Moura
No
dia em que sair este artigo a Maria José Moura será a mais surpreendida. Nada
lhe disse, nem com ela falei desta matéria, mas há casos em que há uma enorme
justiça a fazer e eu posso ajudar a que ela seja feita. É uma oportunidade que
não posso falhar, nem me interessa falhar porque se deste artigo resultar
aquilo que proponho – uma proposta sem custos, sem prejuízo para ninguém, mas
uma proposta que nos melhora a todos, - dou por bem gastas estas linhas do
PÚBLICO.
Maria José Moura não é conhecida do grande público,
como muita gente de mérito em Portugal, mas é uma figura tutelar, familiar,
próxima de todos os que trabalham ou trabalharam nas bibliotecas em Portugal. O
que lhe devemos é nem mais nem menos do que centenas de bibliotecas por todo o
país, a modernização da formação de centenas de bibliotecários, a
internacionalização da sua profissão, a dinamização da BAD, e um esforço
constante para que todos os portugueses, nos municípios, nas escolas, um pouco
por todo o lado, possam aceder aos livros e ler. Todo este trabalho de décadas
teve em Maria José Moura o protótipo do que deve ser uma alta funcionária
pública, num país que maltrata os seus funcionários públicos, mesmo quando
muito lhes deve.
Já varias vezes falei a quem de direito de que haveria
uma simples homenagem a Maria José Moura, que certamente a satisfaria: dar o
seu nome a uma biblioteca, modesta e pequena que seja. Mas Portugal é um país com muita inércia e muitas
cunhas, e não havendo impulso e movimento, as coisas não avançam. Retomo
de novo esta questão porque vi notícias sobre a inauguração de mais uma nova
biblioteca, a de Marvila, sem nome. Seja essa, seja outra, o que era importante
era dar o nome de Maria José Moura a uma biblioteca, porque todos nós que
gostam de livros, e que entendem que a leitura é um dos principais instrumentos
para dar poder às pessoas numa democracia.
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