Empreendedorismo nas escolas com ferramentas e tudo:
uma forma de incentivar os bons alunos ao abandono escolar, ou de incentivar os
maus alunos com capacidades de liderança a ultrapassarem os mais trabalhadores,
amparados na sua argúcia e no apadrinhamento camarário?... Isto só pode ser
mais um golpe de quem quis ou quer reduzir um país já de fracos valores cívicos e
culturais à sua eliminação total. Um país de uma exigência de estudo
aterradora, impeditiva de seriedade - tendo em conta aqueles alunos que não têm
quem os acompanhe no estudo, a menos que sejam de inteligência excepcional - o
que não é o caso, as escolas virando depósito de adolescentes de comportamentos
desvairados.
Talvez por isso os adultos camarários os queiram pôr a
trabalhar mais depressa, no desvio das suas capacidades desordeiras para o seu
contributo financeiro ao Estado, manietados que ficarão em trabalho e impostos,
produto, pois, de rendimento e não de extravagância juvenil.
O artigo de Santana Castilho – Os tambores do empreendedorismo – é explícito na indignidade dessa tal “fábrica de líderes” – que provavelmente
o Governo apoia. Todo ele é uma lição frontal que nos indigna, nos sucessivos
artifícios de falsa – ou vil - reconstrução. Repito apenas os argumentos
seguintes que nos envergonham, na constatação de que nunca chegaremos a
libertar-nos do sentimento de pertença aos países mais atrasados:
«quanto
mais atrasados são os países, mais elevados são os níveis de empreendedorismo
dos seus cidadãos (o auto-emprego na Noruega não chega a 10%, mas no Bangladesh
pula para 75%); o grosso dos activos dos países desenvolvidos
trabalha em grandes organizações, que não em pequenos “negócios”;…»
Os tambores do empreendedorismo
Pelo Expresso de
22 de Outubro, fiquei a saber que está criada uma “fábrica de líderes”
(sic) em Cascais. A matéria-prima para a fabricação são 10 mil alunos de 50
escolas de Cascais. Diz a notícia que se trata do “maior programa
municipal de empreendedorismo nas escolas” e afirma o obreiro mor, vereador
Nuno Piteira Lopes, que quer “despertar o espírito empreendedor dos mais
novos, dando-lhes ferramentas para encararem a criação de negócio próprio”.
A iniciativa é da DNA Cascais, dita pelos costumes como
associação sem fins lucrativos, mas verificada, de facto, como uma emanação da
Câmara Municipal de Cascais. Com efeito, os associados fundadores são
empresas municipais e a própria câmara e os órgãos sociais confundem-se, ora
com políticos do PSD, ora com elementos da autarquia. Tudo em casa, pois, com a
municipalização da Educação a passar de fininho, sob a égide da geringonça.
“Softkills” (é talvez um acto falhado, mas é assim que está escrito no
texto que cito) e “coaching”, são dois instrumentos pedagógicos
com que o despertador de espíritos, Piteira Lopes, conta para catequisar 10 mil
indígenas. O presidente da Câmara Municipal de Óbidos, o primeiro que
se chegou à frente logo que a municipalização deu os primeiros passos, aquele
que anunciou filosofia para os alunos do 1º ciclo do
básico, yoga para os do jardim-de-infância
e golf e eco design para os do secundário, não está mais só
em matéria de arrojo. Já só faltam 306 contributos das restantes câmaras do país,
no prometedor caminho da municipalização da Educação, para termos o
curriculum nacional transformado numa empreendedora nave de loucos.
Em
matéria de parceiros, Cascais tem um de peso: a Junior Achievement
Portugal, aquela associação que foi acusada por um grupo de mães e pais
de andar a “doutrinar crianças a ver a família como unidade de consumo e
produção”.
A
educação é cada vez mais pautada pela doutrina da sociedade de consumo e os
alunos são cada vez mais orientados para os desejos que a orgia da publicidade
fomenta. O nosso sistema de ensino deixa-os sem tempo para serem
crianças, porque lhes define rotinas e obrigações segundo um modelo de
adestramento que ignora as suas necessidades vitais de crescimento. A
compreensão simples do que é uma criança é constantemente distorcida. E,
digo-o com pesar, se não tivéssemos demasiados professores a não fazerem o
seu trabalho, isto é, apanhando a onda em vez de a questionarem, deixando-se
envolver por ideias neoliberais, devidamente higienizadas por discursos
modernistas, a probabilidade destes discursos morrerem à nascença era bem maior
que a possibilidade de granjearem adesões cúmplices.
Com
consciência operante umas vezes, de modo acéfalo outras, há uma comunicação
social dominante, que usa técnicas de propaganda para formatar a opinião
pública. Com peças persuasivas, na ausência de contraditório, é ver como
fraudes e agressões passam por virtudes, trazendo consentimento
para onde deveria existir questionamento, senão rejeição.
Correndo
o risco de divergir da festa cascalense, permitam-me que complemente a peça do
Expresso com quatro notas sobre a moda do empreendedorismo: cerca de 40%
dos nossos activos são empresários em nome próprio ou labutam em empresas que
têm menos de uma dezena de trabalhadores (o que mostra que não nos falta
iniciativa para criar “negócios”); quanto mais atrasados são os países,
mais elevados são os níveis de empreendedorismo dos seus cidadãos (o
auto-emprego na Noruega não chega a 10%, mas no Bangladesh pula para 75%); o
grosso dos activos dos países desenvolvidos trabalha em grandes organizações,
que não em pequenos “negócios”; concluindo, promovamos um sistema de
ensino que liberte as capacidades criadoras dos jovens (que só acrescentam
valor relevante quando aproveitadas por organizações altamente profissionais e
eficazes) em vez de iludir a chaga do desemprego com o folclore do
empreendedorismo e criação do próprio “negócio”.
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