sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Barracas na maré baixa

Barracas na maré baixa
O artigo vale por si, no seu humor agarotado, que esconde uma profunda preocupação.

É difícil ser de direita em Portugal
Público, 27/10/2016
Tenho de dar razão à esquerda: a direita anda a choramingar há mais de um ano, a anunciar diabos que não vêm, e com muita dificuldade em aceitar aquilo que se está a passar. Gastamos o nosso tempo a apontar diferenças de tratamento, a lamentar que aquilo que em 2015 eram cortes selvagens em 2016 se tenham transformado em indispensáveis cativações, e que trocar tributação directa (progressiva) por tributação indirecta (regressiva) seja a nova definição de uma política de esquerda. Andamos cabisbaixos. Tristes. Jururus. Tudo isso é verdade. Mas se a esquerda vir bem, aquilo que a direita reclama é por um direito que a esquerda até costuma apreciar: a igualdade de oportunidades. Lamentavelmente, a igualdade de oportunidades não existe na política portuguesa. Em Portugal, a esquerda é o homem e a direita é a mulher. Na teoria, têm os mesmos direitos. Na prática, não têm. Um tem de limpar a casa muito mais vezes do que o outro.
Dou-vos um exemplo concreto desse tratamento diferenciado. Há dois dias, a Fenprof respondeu a um artigo meu sobre o desaparecimento de Mário Nogueira e a nova postura do sindicato, que desde que este governo tomou posse trocou a oposição nas ruas pela oposição no site. Embora Mário Nogueira, até para justificar o emprego, não possa abdicar totalmente de um pó-de-arroz sindical e de um eyeliner reivindicativo, a verdade é que o novo Mário Nogueira é o antigo Mário Nogueira sob o efeito do Xanax que lhe é diariamente prescrito pelo PCP enquanto suportar o governo. A Fenprof nem disfarça. Fala de uma direita “assustada e desorientada”, que se afunda nas sondagens e já não consegue enganar os portugueses, para depois concluir: “Não, a Fenprof não muda ao sabor dos governos e só há um interesse que serve: o dos professores que representa!” Esta conclusão faz lembrar a famosa frase de Henry Ford sobre o Ford modelo T: “O cliente pode ter o carro da cor que quiser, desde que seja preto.” Os professores também podem ter a Fenprof que quiserem, desde que seja comunista e desconsidere qualquer governo de direita. Um professor do CDS está tramado: chegou demasiado tarde ao mercado sindical, que vive em situação de quase monopólio. Ou se junta a Mário Nogueira e sus muchachos, ou a sua voz nunca será ouvida.
O meu problema, claro está, não é com a Fenprof, mas com a fenprofização do país, dada o número crescente de portugueses dependentes do Estado. Enquanto as vacas foram gordas, a alternância democrática foi sendo assegurada, e o país, mais mal do que bem, foi sendo empurrado para a frente – sempre contra a vontade do PCP e da CGTP, sublinhe-se. Mas em tempos de vacas magras, temo que a esquerda portuguesa e as instituições que a apoiam – como os sindicatos –, às quais o regime foi oficiosamente entregue no pós-25 de Abril em troca da democracia e da paz, tenham reconquistado um poder que já não tinham desde 1975. E o poder é este: a esquerda ou consegue governar, ou consegue impedir que a direita governe, seja através de uma enorme contestação social, seja através da cultura de esquerda que varre a Constituição. Daí a desigualdade de oportunidades. É verdade que a esquerda não pode repor mais “direitos” porque a Europa não deixa. Mas a direita não pode impor mais reformas porque a cultura de esquerda não permite. A esquerda tem um problema com o fora; a direita tem um problema com o dentro. Não admira que andemos enfastiados. É muito difícil ser de direita neste país.

Mas o sentimento é antigo, sempre se deu por isso, desde que se inverteu a marcha de 42 anos atrás. É certo que o sentido crítico naquela época também nem sempre era aceite com isenção. Lembro-me dum pequeno texto que publiquei na Página da Mulher do Notícias de Lourenço Marques, coisa insignificante, mas, segundo me disse Irene Gil, a orientadora da Página, merecera a desaprovação de um qualquer bem graduado do Exército, que nessa altura estava bem posicionado para desaprovar. Era este, o texto, extraído de “Pedras de Sal”, 1974, 2ª edição em “Cravos Roxos” (1981):
As Tabuletas
«A nossa praia geral da Polana está subdividida em várias particularidades, como a da Ponta do Mar, a do Bosque, a dos Militares, muito ciosos estes das suas prerrogativas marítimas, alcançadas, certamente, por meio do brilho das suas espadas fulgentes e garbosas.
Há dias, a Joaninha foi à tal praia dos militares ciosos e ficou muito impressionada com uns letreiros discriminatórios das barracas para os oficiais, os sargentos e os praças, novas subdivisões ainda de uma subdivisão maior.
Como é muito observadora, pôs-se logo a destrinçar sobre a qualidade dos panos das barracas em cada sector e também sobre o tamanho da sombra que cada um projectava, e a espessura e o marulho das ondas para cada subdivisória. Aparentemente não notou discrepâncias, as sombras e os panos das barracas eram idênticos, e idêntica a sujidade nas areias lodosas da maré baixa.
Como além de observadora é muito recalcitrante, resolveu ir com a irmã para uma barraca do “côté” dos praças, mas, muito correctamente, foi convidada a retirar-se para o côté competente e superior. Tentou explicar as suas preferências pelos praças por causa do azul mais doce do mar grandioso e inocente das grandezas humanas, mas acabou por educadamente se retirar para uma banda não militar, uma colónia balnear, onde não havia ainda dessas discriminações por as crianças estarem aí mais ou menos niveladas quanto à sua posição social.
Não sei se a Joaninha tem razão nos seus protestos generosos. A verdade é que a compartimentação dos produtos foi sempre necessária e até na cozinha e na despensa usamos o processo, para não confundirmos, numa pressa, os feijões com as salsichas, nem os filetes de pescada com os fósforos «Pala-Pala», se bem que inofensivos estes últimos.
Se as jovens que vão à praia militar não encontrassem as tabuletas indicativas, arriscar-se-iam a deixar-se deslumbrar apressadamente e erradamente, contrariando as inclinações das famílias, o que sempre provocou graves crises domésticas, de que o Romeu e a Julieta constituem o exemplo mais do conhecimento geral, logo seguido do Simão Botelho e a diáfana Teresa, no seu melancólico “Amor de Perdição”.»

Lembrei-me do texto, por analogia, sentindo quanto, desde sempre, constituímos peças de uma engrenagem que, naturalmente, nunca muda, mesmo que se actualizem as peças. Na altura, até fiquei amedrontada, que o Exército era poderoso bastante para não aceitar destes atrevimentos de inferiores, que ainda por cima tinham de zelar pela vasta família. Mas agora não haveria desses castigos de despedimento, pelo menos por causa tão banal. João Miguel Tavares, sensível que é, nem precisa de se amedrontar com a sua sinceridade, pois vive em democracia, provavelmente até ditada por alguns desses ditadores da moda de antanho, que rapidamente desfizeram as barracas, mal soou o grito de Abril. Ele bem pode mostrar a sua lisura de pensamento, que a única pecha que o pode infamar serão as críticas por vezes bem soezes dos comentadores integrados na visão maniqueísta de pensamento militarizante: esquerda/direita.
De facto, as sujeições dos Mários Nogueiras ao partido que os orienta são  bem visíveis, de uma mansidão aparente, por conveniência do partido novamente no poder, que por sua vez esconde cautelosamente as garras, no seu compadrio amistoso.

Para mim, a “direita” PSD pode estar expectante, sem conseguir convencer acerca do desaire provável do novo governo. Como gostaria que Portugal bolasse para a frente, não desejo que António Costa se engane nas suas previsões. Para mim, Passos Coelho  será sempre aquele moço que quis retirar Portugal do labéu de ser caloteiro.

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