Barracas na maré baixa
O artigo vale por si, no seu
humor agarotado, que esconde uma profunda preocupação.
É difícil ser de direita em
Portugal
Público, 27/10/2016
Tenho de dar razão à esquerda: a direita anda a
choramingar há mais de um ano, a anunciar diabos
que não vêm, e com muita dificuldade em aceitar aquilo que se está a passar.
Gastamos o nosso tempo a apontar diferenças de tratamento, a lamentar que
aquilo que em 2015 eram cortes selvagens em 2016 se tenham transformado em
indispensáveis cativações, e que trocar tributação directa (progressiva) por
tributação indirecta (regressiva) seja a nova definição de uma política de
esquerda. Andamos cabisbaixos. Tristes. Jururus. Tudo isso é verdade. Mas se a
esquerda vir bem, aquilo que a direita reclama é por um direito que a esquerda
até costuma apreciar: a igualdade de oportunidades. Lamentavelmente, a
igualdade de oportunidades não existe na política portuguesa. Em
Portugal, a esquerda é o homem e a direita é a mulher. Na teoria, têm os mesmos
direitos. Na prática, não têm. Um tem de limpar a casa muito mais vezes do que
o outro.
Dou-vos
um exemplo concreto desse tratamento diferenciado. Há dois dias, a Fenprof respondeu
a um artigo meu sobre o desaparecimento de Mário Nogueira
e a nova postura do sindicato, que desde que este governo tomou posse trocou a
oposição nas ruas pela oposição no site. Embora Mário Nogueira, até para
justificar o emprego, não possa abdicar totalmente de um pó-de-arroz sindical e
de um eyeliner reivindicativo, a verdade é que o novo Mário Nogueira
é o antigo Mário Nogueira sob o efeito do Xanax que lhe é diariamente
prescrito pelo PCP enquanto suportar o governo. A Fenprof nem disfarça. Fala
de uma direita “assustada e desorientada”, que se afunda nas sondagens e já não
consegue enganar os portugueses, para depois concluir: “Não, a Fenprof não muda
ao sabor dos governos e só há um interesse que serve: o dos professores que
representa!” Esta conclusão faz lembrar a famosa frase de Henry Ford sobre
o Ford modelo T: “O cliente pode ter o carro da cor que quiser, desde que
seja preto.” Os professores também podem ter a Fenprof que quiserem,
desde que seja comunista e desconsidere qualquer governo de direita. Um
professor do CDS está tramado: chegou demasiado tarde ao mercado sindical, que
vive em situação de quase monopólio. Ou se junta a Mário Nogueira e sus
muchachos, ou a sua voz nunca será ouvida.
O
meu problema, claro está, não é com a Fenprof, mas com a fenprofização do
país, dada o número crescente de portugueses dependentes do Estado. Enquanto
as vacas foram gordas, a alternância democrática foi sendo assegurada, e o
país, mais mal do que bem, foi sendo empurrado para a frente – sempre contra a
vontade do PCP e da CGTP, sublinhe-se. Mas em tempos de vacas magras, temo
que a esquerda portuguesa e as instituições que a apoiam – como os
sindicatos –, às quais o regime foi oficiosamente entregue no pós-25 de
Abril em troca da democracia e da paz, tenham reconquistado um poder que já não
tinham desde 1975. E o poder é este: a esquerda ou consegue governar, ou
consegue impedir que a direita governe, seja através de uma enorme contestação
social, seja através da cultura de esquerda que varre a Constituição. Daí
a desigualdade de oportunidades. É verdade que a esquerda não pode repor
mais “direitos” porque a Europa não deixa. Mas a direita não pode impor mais
reformas porque a cultura de esquerda não permite. A esquerda tem um problema
com o fora; a direita tem um problema com o dentro. Não admira que andemos
enfastiados. É muito difícil ser de direita neste país.
Mas o sentimento é antigo, sempre se deu por
isso, desde que se inverteu a marcha de 42 anos atrás. É certo que o sentido
crítico naquela época também nem sempre era aceite com isenção. Lembro-me dum
pequeno texto que publiquei na Página da Mulher do Notícias de Lourenço
Marques, coisa insignificante, mas, segundo me disse Irene Gil, a orientadora da
Página, merecera a desaprovação de um qualquer bem graduado do Exército, que
nessa altura estava bem posicionado para desaprovar. Era este, o texto,
extraído de “Pedras de Sal”, 1974, 2ª edição em “Cravos Roxos”
(1981):
As Tabuletas
«A nossa praia geral da Polana está subdividida
em várias particularidades, como a da Ponta do Mar, a do Bosque, a dos
Militares, muito ciosos estes das suas prerrogativas marítimas, alcançadas,
certamente, por meio do brilho das suas espadas fulgentes e garbosas.
Há dias, a Joaninha foi à tal praia dos
militares ciosos e ficou muito impressionada com uns letreiros discriminatórios
das barracas para os oficiais, os sargentos e os praças, novas subdivisões
ainda de uma subdivisão maior.
Como é muito observadora, pôs-se logo a destrinçar
sobre a qualidade dos panos das barracas em cada sector e também sobre o
tamanho da sombra que cada um projectava, e a espessura e o marulho das ondas
para cada subdivisória. Aparentemente não notou discrepâncias, as sombras e os
panos das barracas eram idênticos, e idêntica a sujidade nas areias lodosas da
maré baixa.
Como além de observadora é muito recalcitrante,
resolveu ir com a irmã para uma barraca do “côté” dos praças, mas, muito
correctamente, foi convidada a retirar-se para o côté competente e superior.
Tentou explicar as suas preferências pelos praças por causa do azul mais doce
do mar grandioso e inocente das grandezas humanas, mas acabou por educadamente
se retirar para uma banda não militar, uma colónia balnear, onde não havia
ainda dessas discriminações por as crianças estarem aí mais ou menos niveladas
quanto à sua posição social.
Não sei se a Joaninha tem razão nos seus
protestos generosos. A verdade é que a compartimentação dos produtos foi sempre
necessária e até na cozinha e na despensa usamos o processo, para não
confundirmos, numa pressa, os feijões com as salsichas, nem os filetes de
pescada com os fósforos «Pala-Pala», se bem que inofensivos estes últimos.
Se as jovens que vão à praia militar não
encontrassem as tabuletas indicativas, arriscar-se-iam a deixar-se deslumbrar
apressadamente e erradamente, contrariando as inclinações das famílias, o que
sempre provocou graves crises domésticas, de que o Romeu e a Julieta constituem
o exemplo mais do conhecimento geral, logo seguido do Simão Botelho e a diáfana
Teresa, no seu melancólico “Amor de Perdição”.»
Lembrei-me do texto, por analogia, sentindo
quanto, desde sempre, constituímos peças de uma engrenagem que, naturalmente,
nunca muda, mesmo que se actualizem as peças. Na altura, até fiquei amedrontada,
que o Exército era poderoso bastante para não aceitar destes atrevimentos de
inferiores, que ainda por cima tinham de zelar pela vasta família. Mas agora
não haveria desses castigos de despedimento, pelo menos por causa tão banal. João
Miguel Tavares, sensível que é, nem precisa de se amedrontar com a sua
sinceridade, pois vive em democracia, provavelmente até ditada por alguns desses
ditadores da moda de antanho, que rapidamente desfizeram as barracas, mal soou
o grito de Abril. Ele bem pode mostrar a sua lisura de pensamento, que a única
pecha que o pode infamar serão as críticas por vezes bem soezes dos
comentadores integrados na visão maniqueísta de pensamento militarizante: esquerda/direita.
De facto, as sujeições dos Mários Nogueiras ao
partido que os orienta são
bem visíveis, de uma mansidão aparente, por conveniência do partido
novamente no poder, que por sua vez esconde cautelosamente as garras, no seu
compadrio amistoso.
Para
mim, a “direita” PSD pode estar expectante, sem conseguir convencer acerca do
desaire provável do novo governo. Como gostaria que Portugal bolasse para a
frente, não desejo que António Costa se engane nas suas previsões. Para mim,
Passos Coelho será sempre aquele moço
que quis retirar Portugal do labéu de ser caloteiro.
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