Quando ouvi num dos telejornais, ou talvez em
alguma entrevista, a referência ao possível acordo comercial com o Canadá,
senti-me, naturalmente, feliz, desejando que o nosso país se erga do atoleiro
em que sempre soçobramos, mesmo quando parecemos estar a expulsar os maus
espíritos do nosso tortuoso caminho, onde a cada passo se assacam aleivosias ou
trapaças que envergonham qualquer espírito menos acomodado. O acordo comercial com
o Canadá possibilitaria trocas comerciais importantes para o erguer de uma
balança indelevelmente marcada pelos saldos negativíssimos do nosso sabe-se lá
o quê! Dolce far niente? Mas há quem produza, e houve quem se servisse até dos
ruídos brutais da modernidade para fazer disso tema dos seus poemas, como
Álvaro de Campos. É certo que um António Nobre se queixava de que maus signos o
perseguiam e dá-nos vontade de dizer o que ele disse do D. Enguiço, que
era ele, provavelmente, pois sempre se queixou de azarado, pobrezinho!
Farto de dores com que o matavam,
Foi em viagens por esse mundo:
Mas os comboios descarrilavam,
Mas os paquetes iam ao fundo!
E essa sua agonia de doente e revoltado, com
que foi tecendo a trama, aparentemente simples e dolorida da sua mística
poética, já, por seu turno, encarnada no saudosismo fatalista da “Menina e
Moça” de Bernardim, tem a ver com a nossa agonia por um Portugal em
permanente desequilíbrio, “Meu pobre Chico! Meu pobre Chico!” (in “D.
Enguiço”).
Repentinamente, segundo notícia que ouvíramos
também e que lemos - 3/11/2016 - somos avisados de que “Portugal deixa setor dos diamantes em Angola ao fim de
um século”: Portugal
oficializou a saída do setor diamantífero angolano, ao fim de um século, com a
Sociedade Portuguesa de Empreendimentos (SPE) a assinar um acordo de cessão das
participações que detém no país.»
Antes disso, esta notícia de Francisco
Assis, que só leio hoje «UE-Canadá: um acordo comercial condenado a soçobrar?», e que me trouxe à lembrança o D. Enguiço.
Francisco Assis é pessoa avisada e sabedora, não está, pois, a mentir. Para elevar, então, o
espírito acabrunhado, só me resta a canção da Maria da Fé, que nos dá alguma
hipótese:
Quando a gente passa e um rapaz suspira
Pode ser mentira, pode ser mentira
Mas se for um homem já de certa idade
Pode ser verdade, pode ser verdade.
Pode ser mentira, pode ser mentira
Mas se for um homem já de certa idade
Pode ser verdade, pode ser verdade.
UE-Canadá: um acordo comercial condenado a soçobrar?
Público, 27/10/2016
Este acordo com o Canadá tem sido apresentado como
o melhor alguma vez alcançado pela União Europeia.
Os tempos que correm não vão de feição para a celebração
de acordos comerciais internacionais. Tanto na Europa como nos
Estados Unidos temos vindo a assistir ao crescimento de tendências
proteccionistas que começam a ter eco no discurso dos principais responsáveis
políticos. No caso norte-americano isso foi muito evidente na campanha
presidencial em curso. Trump, por um lado, e Sanders, por outro, obrigaram
aquela que se perfila como a próxima Presidente dos Estados Unidos, Hillary
Clinton, a alterar o seu posicionamento no domínio da política comercial, com
consequências que só poderão ser plenamente percebidas no âmbito da acção da
mais que provável futura administração democrata. Certo é que, enquanto
candidata, Hillary se viu obrigada a rever posições que anteriormente abraçara
com aparente convicção.
Donald
Trump, como é cada vez mais visível, não dispõe de um discurso político
minimamente coerente e assenta toda a sua campanha numa retórica trauliteira e
demagógica, onde se atropelam declarações moralmente obscenas e propostas
politicamente indiscritíveis. Há, porém, um fio condutor no seu caos
discursivo: a tentativa de seduzir um eleitorado tradicionalmente democrata
constituído pelo que resta da working class branca, residente nos estados que
tiveram no passado uma forte tradição industrial. Esse eleitorado, que em
tempos fugiu para Reagan em nome de um liberalismo económico que haveria de o
desiludir, admite agora votar em Trump em nome precisamente de um
proteccionismo puro e duro que não está dissociado da exaltação daquilo que os
americanos designam por nativismo, e que não deixa de constituir uma
forma de xenofobia. Apesar de tudo, com a previsível vitória democrata, é de
admitir que os Estados Unidos acabem por prosseguir uma política comercial
aberta ao mundo e empenhada na concretização de múltiplos acordos comerciais.
Na
Europa, as coisas também não estão fáceis neste domínio. O
Parlamento Regional da Valónia deliberou opor-se à celebração de um acordo
comercial entre a União Europeia e o Canadá, impedindo assim a Bélgica de o
subscrever. Como neste domínio a União Europeia só pode decidir com base
na unanimidade de posições dos seus Estados-membros, este acordo comercial pode
estar condenado a soçobrar. Curiosamente, o presidente do Governo
Regional da Valónia não é um populista, nem tão pouco um demagogo primário;
pelo contrário, trata-se de um professor universitário com uma vasta e
interessante obra produzida sobre a União Europeia. As razões invocadas têm
que ver, por um lado, com a natureza específica dos mecanismos de arbitragem de
âmbito internacional previstos, e, por outro, com o receio da concorrência num
sector particularmente sensível como é o da agricultura. No fundo, prevalece o
temor de que grandes empresas multinacionais, nomeadamente no sector
agroalimentar, venham a beneficiar de vantagens que possam pôr em causa a
pequena economia valoa. O caso valão não deixa de se inscrever numa progressiva
evolução da opinião pública europeia no sentido da adopção de um posicionamento
crítico em relação aos tratados comerciais.
Há
pelo menos duas ilações a retirar de imediato deste caso: em primeiro
lugar, ele evidencia o carácter profundamente democrático do sistema decisório
europeu, contrariando assim a tese habitualmente expendida pelos
extremistas de esquerda e de direita que gostam de falar de uma autocracia
burocrática sediada em Bruxelas; em segundo lugar, ele obriga todos
aqueles que, como é o meu caso, continuam a preconizar a vantagem da realização
destes acordos comerciais, a um acrescido esforço de explicitação pública dos
seus méritos. Hoje em dia estes acordos já não interessam apenas aos
produtores, como acontecia até a um passado recente, mas suscitam também o
interesse e a curiosidade dos consumidores. Na medida em que o centro
nevrálgico destes tratados foi transferido do domínio do valor das tarifas
aduaneiras para o campo da harmonização normativa ? em áreas tão
importantes como as regras de produção alimentar, a saúde pública ou o
ambiente ? a sua discussão tornou-se um tema fundamental do debate
político actual.
Este
acordo com o Canadá tem sido apresentado como o melhor alguma vez alcançado
pela União Europeia, revestindo-se mesmo de um carácter exemplar pela própria
circunstância de ter como parceiro um país que possui um modelo de organização
económica e social muito próxima do europeu. É mesmo caso para perguntarmos: se
não formos capazes de estabelecer um acordo deste tipo com o Canadá, com quem
seremos nós capazes de chegar a um entendimento comercial?
Esperemos
que estes acidentes de percurso, tão característicos das verdadeiras
democracias, possam ser superados de forma a que possamos alcançar uma maior
regulação da globalização, com a devida salvaguarda dos legítimos interesses
dos diferentes povos europeus. A democracia exige por vezes alguma
lentidão de processos, já que se não baseia na supremacia de um suposto
despotismo tecnocrático esclarecido, nem tão pouco pode ignorar ou sequer
desvalorizar os receios ? por menos racionais que eles possam
parecer ? dos cidadãos que são a sua razão de ser.
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