Um artigo enxuto de Vicente
Jorge Silva, já antigo, mas bem explícito sobre as causas desse grau zero da
democracia. Mas enganou-se. Ganhou a “res publica” isto é, a “democracia” no
seu grau zero, ou seja, na verdadeira acepção do termo. O governo do povo.
Le roi est mort, vive le roi. E
tudo se vai recompor, apesar das bolsas a cair, como primeiro impacto. E o
Trump até pronunciou umas palavras simpáticas iniciais sob o efeito de uma
vitória com que até talvez nem contasse.
Mas o mundo vai recompor-se. Para
todos os efeitos, Trump é um capitalista, num país poderosamente capitalista. O
mundo já o está a convidar, desbarretando-se, segundo os interesses próprios. E
é possível que ele construa nos Estados Unidos aquele paraíso que diz que vai
construir, socorrendo os mais desamparados. Até poderá ser uma lição, nos egoísmos
do mundo.
Sonhemos.
O
grau zero da democracia
23/10/2016
É o desnorte da globalização, com as suas
insustentáveis assimetrias, que favorece a emergência de um Putin – ou de um
Trump.
Mais Clinton, Trump e
nós Uma eleição atípica e em aberto Os deploráveis
estão entre nós Da plutocracia na América: Trump, Clinton e o mal menor
Que uma personagem tão caricatural, execrável e
inverosímil como Donald Trump possa aspirar a ser Presidente da maior potência
ocidental – e arraste atrás de si tantos milhões de eleitores, (embora
insuficientes, felizmente, para garantir-lhe a vitória) – é um sinal
alarmante da degradação da democracia na América. Mas se pensarmos que
esse sinal já se projecta noutras regiões do planeta, desde a Ásia à própria
Europa, então os motivos de preocupação ganham proporções inéditas nas últimas
décadas, mais concretamente desde o pós-Guerra.
No
Oriente, temos o caso extremo das Filipinas, em que um assassino confesso ocupa
a chefia do Estado, enquanto na Europa um pequeno déspota xenófobo é
primeiro-ministro húngaro – inspirando a orientação de vários governos do
centro-leste europeu – e a líder da extrema-direita ‘soberanista’ é dada quase
como certa na segunda volta das presidenciais francesas do próximo ano.
Estes
são apenas alguns exemplos de um panorama em que as tentações populistas e
autoritárias mais irracionais se multiplicam um pouco por toda a parte e o
desencanto com o legado democrático alastra entre populações onde ele parecia
mais fortemente implantado. Estaremos, assim, perante uma crise global das
democracias, um canto do cisne das promessas da globalização do mercado livre
e, por extensão irresistível, das sociedades abertas em que ele deveria,
supostamente, prosperar?
Ora,
precisamente, um denominador comum deste fenómeno é a tendência crescente
para o isolacionismo, o fechamento das fronteiras, o temor do estrangeiro –
alimentado, é certo, pelo terrorismo – e, last but not the least, a recusa
da globalização. Uma globalização que, cavalgando na onda do
capitalismo financeiro e da desregulação dos mercados, foi ampliando o número
daqueles que dela se sentem excluídos e vítimas, com ou sem razão objectiva –
mas reféns de fantasmas que os aprisionam nos seus medos.
É
o desnorte da globalização, com as suas insustentáveis assimetrias, que favorece
a emergência de um Putin – ou de um Trump. Não é por acaso que Trump se
mostra tão complacente ou mesmo cúmplice do instinto predador de Putin.
Como também não é por acaso que este se considera invulnerável na sua fuga para
a frente, na Ucrânia, na Síria ou na espionagem electrónica da campanha
democrática americana, canalizada para os falsos rebeldes e idiotas úteis da
Wikileaks. Eis o preço de um mundo desregulado e caótico.
A
8 de Novembro os americanos vão votar em dois candidatos nos quais, segundo as
sondagens, uma significativa maioria deles não confia. Trump é o que se sabe,
mas Hillary Clinton – que, em circunstâncias normais, deveria ganhar por
larguíssima maioria face a um perigoso marginal – não escapa ao estigma da
duplicidade, do cinismo e da promiscuidade de interesses que acabaram por
moldar o perfil mais sombrio da sua personalidade.
Casos
como os da Fundação Clinton, os milhares de e-mails confidenciais enviados do
seu servidor pessoal, as suas relações com Wall Street e os poderes do dinheiro
– de que agora tenta demarcar-se – tornaram-na alvo da desconfiança popular,
especialmente face a um eleitorado em guerra com o establishment, e exposta,
assim, à vulgaridade obscena de Trump. Que este tenha, afinal, acabado por
perder definitivamente o pé por causa da divulgação de um vídeo de conteúdo
sexista e rasca, mostra o nível de alternativas políticas a que chegou a
democracia americana.
Se
fosse americano, votaria decerto em Hillary, mas por defeito. Para tentar
escapar ao grau zero da democracia que ameaça a América – e o mundo.
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