sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Tempo de desporto para os hinos



É verdade que já não se aprende o hino nacional nas escolas, tendo embora os alunos uma disciplina chamada de Educação Cívica, creio que mais centrada no aluno como ser humano com a sua história para contar, a escola tornando-se assim espaço de mexerico, próprio desta sociedade aberta ao eu, onde os temas do respeito pelos valores da cidadania e do respeito pátrio são soterrados na educação para a sexualidade e para os casos da afectividade ou dos desafectos disciplinares ou familiares. De facto, dantes havia mais contenção emotiva, mais dignidade pessoal, julgo, no espaço escolar, mas desde que se abriram as comportas da afectividade nesse espaço, na falsa equiparação entre os mundos docente e discente provocadora de distúrbio e desatenção, dificilmente o ensino atingirá os objectivos a que se propõe, de real interesse pelo saber, além do respeito pela noção de “pátria”, com a sua história e os seus símbolos que a dignificam. António Bagão Félix o informa, no belo artigo de ironia contra a nossa insensibilidade atropeladora da letra do hino que se aprende eventualmente na idade adulta, caso seja necessário o seu conhecimento. Na realidade, aprendido na infância, ele não mais esqueceria, tal como as tabuadas.
Um belo artigo o de Bagão Félix, irónico mas educativo. Acrescento-lhe o de Eça, d’ Os Maias, que também não respeita o “Hino da Carta”, na linguagem libertina de um Ega, naturalmente corrosiva e ponto de partida desenvolto para a intelectualidade parola de tantos reformistas de hoje e ontem.

Opinião
Hinos e hino (o nosso)
Hoje as crianças e jovens de Portugal dificilmente soletram A Portuguesa, quase ignorada na escola e substituída por outros sinais néscios e apelativos do “futuro”.
António Bagão Félix
Público, 18 de Novembro de 2016
1. Futebol sempre dominante. Nestes últimos dias, em forma de selecções.
Com as múltiplas transmissões televisivas, temos jogos com interesse entre zero e alguma coisa. Confesso que não consigo, salvo raras excepções, ver uma destas partidas de fio a pavio. Passo por lá e logo salto para... um livro.Advertisement
No entanto, há um momento solene que aprecio. Antes dos jogos. Refiro-me à cerimónia dos hinos das nações representadas. Há hinos muito expressivos e belos, as câmaras filmam detalhes interessantes, desde o modo diverso como jogadores sentem (ou não) o hino até às bancadas, ainda que, aqui, em tom mais anárquico.
Há dias, por mero acaso de zapping, ouvi os hinos no jogo Liechtenstein-Itália. Com um tão curioso, como surpreendente momento, relacionado com o hino italiano — Fratelli d’Italia —, para mim o que mais me encanta. Como o dito hino teimava em não ser reproduzido pelos altifalantes, aconteceu que os transalpinos nas bancadas e os jogadores perfilados o entoaram, com o habitual entusiasmo. Só depois veio a gravação e, de novo, as vozes de todos. Uma espécie de duplo hino que teve no capitão, Buffon, o seu intérprete pleno de alma, transbordante de expressividade e de energia.
Mas a surpresa — para mim — não iria ficar por aí, ao ouvir o hino do pequeno principado. E que composição era? O hino britânico (God save the Queen), ainda que, obviamente, com outra letra em alemão, Oben am jungen Rhein (“Acima pelo jovem Reno”).
Há mais hinos em parte “plagiados”. O uruguaio tem algumas notas musicais da ópera Lucrezia Borgia (1833), de G. Donizetti. Há insinuações sobre outros, como os da África do Sul, Argentina e Bósnia.
Por sua vez, a Finlândia e a Estónia têm o hino com a mesma música, de autoria de um... alemão. Por falar em alemão, a melodia do seu hino é do célebre compositor alemão Joseph Haydn (1797).
Por fim, o caso singular do hino espanhol (Marcha Real), que não tem letra. Daí os jogadores não terem necessidade de a aprender, de afogadilho.
2. Bem sei que bandeiras e hinos vêm sendo desvalorizados, seja pelo seu uso indevido e inoportuno, seja pela inflação pacóvia do seu abuso (da bandeira), seja por omissão, descuido e ignorância.
De há alguns anos a esta parte, só quase me recordo de ouvir o hino nacional no futebol entre selecções (ainda que à mistura com javardices e impropérios) e em esparsas cerimónias públicas a que já poucos dão atenção a não ser por obrigação e outros teimam em desrespeitar, ao quebrar, alarvemente, o silêncio durante a sua audição. Houve até já anúncios publicitários com versões parcelares e abastardadas do nosso hino.
Hoje as crianças e jovens de Portugal dificilmente soletram A Portuguesa, quase ignorada na escola e substituída por outros sinais néscios e apelativos do “futuro”. Quando a escola se desvaloriza, tudo se torna “escola”.
De vez em quando, também se ouvem telemóveis com A Portuguesa, disponibilizada pelas operadoras em concorrência com qualquer dos muitos toques “pimba” que por aí abundam para desgraça dos nossos ouvidos.
Sou dos que se levantam quando toca o nosso hino, mas vejo muita gente que fica como se nada se passasse. Perante os símbolos pátrios tenho uma posição de respeito, não por um qualquer nacionalismo exagerado, mas antes pela consideração por valores, símbolos e desígnios que não podem ser alienados por fazerem parte do património incorpóreo de Portugal.
Entre “as brumas da memória” ainda há espaço para respeitar “os egrégios avós” desta Nação de quase nove séculos. 

Do capítulo X de Os Maias: episódio As corridas de cavalos
«Nesse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan molengão de tambores e pratos, o hino da Carta, a que se misturou uma voz de oficial e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-Rei apareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de veludo, e chapéu branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora espanhola, essa, tomou o óculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descansadamente, pôs-se a examinar o rei. D. Maria achava ridícula a música, dando ás corridas um ar de arraial... Além disso, que tolice, o hino, como num dia de parada! - E este hino, então, que é medonho, dizia Carlos. A Sr.ª D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua teoria dos hinos? Maravilhosa!
- Aquele Ega! dizia ela sorrindo, já encantada.
- O Ega diz que o hino é a definição pela música do carácter dum povo. Tal é o compasso do hino nacional, diz ele, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a Sr.ª D. Maria os diferentes hinos, segundo o Ega. A Marselhesa avança com uma espada nua. O God save te queen adianta-se, arrastando um manto real...
- E o hino da Carta?
- O hino da Carta ginga, de rabona.
E D. Maria ria ainda, quando a espanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquilamente o binóculo no regaço, murmurou:
- Tiene cara de buena persona.
- Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excelente!»

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