É verdade que já não se aprende o hino nacional nas
escolas, tendo embora os alunos uma disciplina chamada de Educação Cívica,
creio que mais centrada no aluno como ser humano com a sua história para contar,
a escola tornando-se assim espaço de mexerico, próprio desta sociedade aberta
ao eu, onde os temas do respeito pelos valores da cidadania e do respeito
pátrio são soterrados na educação para a sexualidade e para os casos da
afectividade ou dos desafectos disciplinares ou familiares. De facto, dantes
havia mais contenção emotiva, mais dignidade pessoal, julgo, no espaço escolar,
mas desde que se abriram as comportas da afectividade nesse espaço, na falsa
equiparação entre os mundos docente e discente provocadora de distúrbio e
desatenção, dificilmente o ensino atingirá os objectivos a que se propõe, de
real interesse pelo saber, além do respeito pela noção de “pátria”, com a sua
história e os seus símbolos que a dignificam. António Bagão Félix o informa, no
belo artigo de ironia contra a nossa insensibilidade atropeladora da letra do
hino que se aprende eventualmente na idade adulta, caso seja necessário o seu
conhecimento. Na realidade, aprendido na infância, ele não mais esqueceria, tal
como as tabuadas.
Um belo artigo o de Bagão Félix, irónico mas
educativo. Acrescento-lhe o de Eça, d’ Os Maias, que também não respeita
o “Hino da Carta”, na linguagem libertina de um Ega, naturalmente corrosiva
e ponto de partida desenvolto para a intelectualidade parola de tantos
reformistas de hoje e ontem.
Opinião
Hinos e hino (o nosso)
Hoje as crianças e jovens de Portugal dificilmente
soletram A Portuguesa, quase ignorada na escola e substituída por outros sinais
néscios e apelativos do “futuro”.
António Bagão Félix
Público, 18 de Novembro
de 2016
1. Futebol sempre dominante. Nestes
últimos dias, em forma de selecções.
Com as múltiplas transmissões televisivas, temos jogos com interesse entre zero e alguma coisa. Confesso que não consigo, salvo raras excepções, ver uma destas partidas de fio a pavio. Passo por lá e logo salto para... um livro.
Com as múltiplas transmissões televisivas, temos jogos com interesse entre zero e alguma coisa. Confesso que não consigo, salvo raras excepções, ver uma destas partidas de fio a pavio. Passo por lá e logo salto para... um livro.

No
entanto, há um momento solene que aprecio. Antes dos jogos. Refiro-me à
cerimónia dos hinos das nações representadas. Há hinos muito expressivos e
belos, as câmaras filmam detalhes interessantes, desde o modo diverso como
jogadores sentem (ou não) o hino até às bancadas, ainda que, aqui, em tom mais
anárquico.
Há
dias, por mero acaso de zapping, ouvi os hinos no jogo Liechtenstein-Itália.
Com um tão curioso, como surpreendente momento, relacionado com o hino
italiano — Fratelli d’Italia —, para mim o que mais me encanta. Como
o dito hino teimava em não ser reproduzido pelos altifalantes, aconteceu que os
transalpinos nas bancadas e os jogadores perfilados o entoaram, com o habitual
entusiasmo. Só depois veio a gravação e, de novo, as vozes de todos. Uma
espécie de duplo hino que teve no capitão, Buffon, o seu intérprete pleno de
alma, transbordante de expressividade e de energia.
Mas
a surpresa — para mim — não iria ficar por aí, ao ouvir o hino do pequeno
principado. E que composição era? O hino britânico (God save the Queen), ainda
que, obviamente, com outra letra em alemão, Oben am jungen Rhein (“Acima pelo
jovem Reno”).
Há
mais hinos em parte “plagiados”. O uruguaio tem algumas notas musicais
da ópera Lucrezia Borgia (1833), de G. Donizetti. Há insinuações
sobre outros, como os da África do Sul, Argentina e Bósnia.
Por
sua vez, a Finlândia e a Estónia têm o hino com a mesma música, de
autoria de um... alemão. Por falar em alemão, a melodia do seu hino é do
célebre compositor alemão Joseph Haydn (1797).
Por
fim, o caso singular do hino espanhol (Marcha Real), que não tem letra.
Daí os jogadores não terem necessidade de a aprender, de afogadilho.
2. Bem sei que bandeiras e hinos
vêm sendo desvalorizados, seja pelo seu uso indevido e inoportuno, seja pela
inflação pacóvia do seu abuso (da bandeira), seja por omissão, descuido e
ignorância.
De
há alguns anos a esta parte, só quase me recordo de ouvir o hino nacional
no futebol entre selecções (ainda que à mistura com javardices e impropérios) e
em esparsas cerimónias públicas a que já poucos dão atenção a não ser por
obrigação e outros teimam em desrespeitar, ao quebrar, alarvemente, o silêncio
durante a sua audição. Houve até já anúncios publicitários com versões
parcelares e abastardadas do nosso hino.
Hoje
as crianças e jovens de Portugal dificilmente soletram A Portuguesa, quase
ignorada na escola e substituída por outros sinais néscios e apelativos do
“futuro”. Quando a escola se desvaloriza, tudo se torna “escola”.
De
vez em quando, também se ouvem telemóveis com
A Portuguesa, disponibilizada pelas operadoras em concorrência com
qualquer dos muitos toques “pimba” que por aí abundam para desgraça dos nossos
ouvidos.
Sou
dos que se levantam quando toca o nosso hino, mas vejo muita gente que fica
como se nada se passasse. Perante os símbolos pátrios tenho uma posição de
respeito, não por um qualquer nacionalismo exagerado, mas antes pela
consideração por valores, símbolos e desígnios que não podem ser alienados por
fazerem parte do património incorpóreo de Portugal.
Entre
“as brumas da memória” ainda há espaço para respeitar “os egrégios
avós” desta Nação de quase nove séculos.
Do capítulo X de Os Maias: episódio As
corridas de cavalos
«Nesse momento, por traz do recinto, rompia,
com um taran-tan-tan molengão de tambores e pratos, o hino da Carta, a
que se misturou uma voz de oficial e o bater de coronhas. E, entre dourados de
dragonas, El-Rei apareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de veludo, e chapéu
branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora
espanhola, essa, tomou o óculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito
descansadamente, pôs-se a examinar o rei. D. Maria achava ridícula a música,
dando ás corridas um ar de arraial... Além disso, que tolice, o hino, como num
dia de parada! - E este hino, então, que é medonho, dizia Carlos. A Sr.ª D.
Maria não sabe a definição do Ega, e a sua teoria dos hinos? Maravilhosa!
-
Aquele Ega! dizia ela sorrindo, já encantada.
-
O Ega diz que o hino é a definição pela música do carácter dum povo. Tal é o
compasso do hino nacional, diz ele, tal é o movimento moral da nação. Agora
veja a Sr.ª D. Maria os diferentes hinos, segundo o Ega. A Marselhesa avança
com uma espada nua. O God save te queen adianta-se, arrastando um manto real...
-
E o hino da Carta?
-
O hino da Carta ginga, de rabona.
E
D. Maria ria ainda, quando a espanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquilamente
o binóculo no regaço, murmurou:
- Tiene cara de buena persona.
-
Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excelente!»
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