Já
tínhamos passado em revista as atitudes do presidente Marcelo junto da rainha
Isabel II, página televisiva que eu
virara sem querer ver mais, corrida de vergonha, mas que as minhas parceiras
reproduziram, pela saloiice demonstrada, ou de senilidade ou de defeito de
educação já desde menino, ao qual se permitiu que vivesse a vida a infiltrar-se
junto dos mais, exibindo saberes, provocando a admiração em seu redor, sem
medir distâncias, como presidente distribuindo afectos junto do povo, e, neste
caso, junto de uma rainha educada no comedimento dos gestos. Educada, apenas. Há
muitos que o atacam nessa desmesura bacoca
do “ir a todas”, mas Marcelo não os ouve ou nem os lê, no nicho do seu
resguardo, só próprio de um ser pertencente a um povo habituado à mendicância,
ainda que só de afectos. Uns tristes que somos. Não merecemos mais. Cavaco, apesar
de tudo, tinha mais classe.
Mas
a nossa amiga estava sombria, e referiu um divertimento destinado às crianças,
em Lisboa, uma espécie de concurso : «E perguntava o jornalista a uma
criança: Quantos já matou hoje? Um concurso que vem da América que é o país do
crime. Portugal não era um país violento. Agora o crime é diário. E este
concurso de brincadeira para detectar quais as crianças que mais matam é só mais uma aberração “educativa” entre as
mais.”
Lembrei
a brutalidade arrogante na tropa e os dois rapazes que morreram devido a isso,
na indiferença dos chefes militares. E falámos nos filmes de violência, também responsáveis
pela insensibilidade aos valores, que
atinge as famílias e se repercute nas escolas, e, naturalmente, em toda a
sociedade.
E
a nossa amiga continuou: «E já não se limitam a matar. Agora já se desfiguram
os mortos. Com ácido sulfúrico”.
Lembrei,
contudo, como prova de violência antiga, as praxes infernais cada vez mais sem
sentido, na palhaçada desprezível - de proteccionismo, segundo alguns, mas que
o próprio Verney explicara como forma – já no século XVIII - dos alunos mais
velhos se irem acolitando na mesa dos caloiros. Tristes que fomos, tristes que
somos, em descaramento, má criação e parasitismo madraço.
De
repente, já passáramos a outros assuntos menos mofinos, a nossa amiga, em ar misteriosamente
triunfal, saca da bolsa um montinho de tiras de papel transparente, apertados
com grande clipe, escritos a químico, que se revelou, pelas datas que
escrupulosamente ela apusera, juntamente com o local, Quelimane, pertencerem
aos anos 56 e 57: tinham sido escritos na máquina da escola, sonegado ao tempo
de trabalho, canções e poemas que a minha irmã transpunha da rádio, e que as
duas cantavam pelas ruas de Quelimane,
em tom baixo, naturalmente, mas bem feliz dos seus vinte anos e pouco. Lembrei-me
que, de facto, já nos nossos tempos do liceu, tínhamos o hábito de escrever as
canções em voga, mas era sobretudo a minha irmã que as copiava à mão, num
caderninho, sentada diante do rádio. Deslumbradas, percorremos aquelas letras
onde perpassavam “Three coins in the fountain” do Sinatra, “Maria
Luísa” de Luís Mariano, “Arriverderci
Roma” de Mario Lanza, “La vie en rose” da Edith Piaf, “A
grande marcha de Lisboa” de Maria Clara, a valsa “Lili” da Leslie
Caron e tantos outros poemas e canções,
que íamos entoando em surdina, o “Você pensa que cachaça é água”, a “Madame
Rã” da Maria José Valério, “Uma carta de amor” da Maria de Lurdes
Resende, que com tanto prazer revivemos. E entre sonetos e outros poemas, lemos
um poemazinho de Francisco Octaviano, que a Internet me ensina que pertence
à literatura brasileira do século XIX, que a todas agradou e que transcrevo da
Internet, em homenagem à nossa romântica amiga, guardadora de tiras de papel
transparente, onde perpassa um pouco do seu passado que não esquece,
naturalmente e que se deu ao cuidado de guardar numa gaveta:
Ilusões
de Vida
Quem passou pela vida em branca nuvem / E em
plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem, / Só passou pela vida - não viveu.
Quem não sentiu o frio da desgraça, / Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem, / Só passou pela vida - não viveu.
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