segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Uma romântica incorrigível



Já tínhamos passado em revista as atitudes do presidente Marcelo junto da rainha Isabel  II, página televisiva que eu virara sem querer ver mais, corrida de vergonha, mas que as minhas parceiras reproduziram, pela saloiice demonstrada, ou de senilidade ou de defeito de educação já desde menino, ao qual se permitiu que vivesse a vida a infiltrar-se junto dos mais, exibindo saberes, provocando a admiração em seu redor, sem medir distâncias, como presidente distribuindo afectos junto do povo, e, neste caso, junto de uma rainha educada no comedimento dos gestos. Educada, apenas. Há muitos que o atacam  nessa desmesura bacoca do “ir a todas”, mas Marcelo não os ouve ou nem os lê, no nicho do seu resguardo, só próprio de um ser pertencente a um povo habituado à mendicância, ainda que só de afectos. Uns tristes que somos. Não merecemos mais. Cavaco, apesar de tudo, tinha mais classe.
Mas a nossa amiga estava sombria, e referiu um divertimento destinado às crianças, em Lisboa, uma espécie de concurso : «E perguntava o jornalista a uma criança: Quantos já matou hoje? Um concurso que vem da América que é o país do crime. Portugal não era um país violento. Agora o crime é diário. E este concurso de brincadeira para detectar quais as crianças que mais matam é  só mais uma aberração “educativa” entre as mais.”
Lembrei a brutalidade arrogante na tropa e os dois rapazes que morreram devido a isso, na indiferença dos chefes militares. E falámos nos filmes de violência, também responsáveis pela  insensibilidade aos valores, que atinge as famílias e se repercute nas escolas, e, naturalmente, em toda a sociedade.
E a nossa amiga continuou: «E já não se limitam a matar. Agora já se desfiguram os mortos. Com ácido sulfúrico”.
Lembrei, contudo, como prova de violência antiga, as praxes infernais cada vez mais sem sentido, na palhaçada desprezível - de proteccionismo, segundo alguns, mas que o próprio Verney explicara como forma – já no século XVIII - dos alunos mais velhos se irem acolitando na mesa dos caloiros. Tristes que fomos, tristes que somos, em descaramento, má criação e parasitismo madraço.
De repente, já passáramos a outros assuntos menos mofinos, a nossa amiga, em ar misteriosamente triunfal, saca da bolsa um montinho de tiras de papel transparente, apertados com grande clipe, escritos a químico, que se revelou, pelas datas que escrupulosamente ela apusera, juntamente com o local, Quelimane, pertencerem aos anos 56 e 57: tinham sido escritos na máquina da escola, sonegado ao tempo de trabalho, canções e poemas que a minha irmã transpunha da rádio, e que as duas cantavam pelas ruas  de Quelimane, em tom baixo, naturalmente, mas bem feliz dos seus vinte anos e pouco. Lembrei-me que, de facto, já nos nossos tempos do liceu, tínhamos o hábito de escrever as canções em voga, mas era sobretudo a minha irmã que as copiava à mão, num caderninho, sentada diante do rádio. Deslumbradas, percorremos aquelas letras onde perpassavam “Three coins in the fountain” do Sinatra, “Maria Luísa” de Luís Mariano, “Arriverderci  Roma” de Mario Lanza, “La vie en rose” da Edith Piaf, “A grande marcha de Lisboa” de Maria Clara, a valsa “Lili” da Leslie Caron  e tantos outros poemas e canções, que íamos entoando em surdina, o “Você pensa que cachaça é água”, a “Madame Rã” da Maria José Valério, “Uma carta de amor” da Maria de Lurdes Resende, que com tanto prazer revivemos. E entre sonetos e outros poemas, lemos um poemazinho de Francisco Octaviano, que a Internet me ensina que pertence à literatura brasileira do século XIX, que a todas agradou e que transcrevo da Internet, em homenagem à nossa romântica amiga, guardadora de tiras de papel transparente, onde perpassa um pouco do seu passado que não esquece, naturalmente e que se deu ao cuidado de guardar numa gaveta:
Ilusões de Vida
Quem passou pela vida em branca nuvem  /  E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,   /  Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,   /  Só passou pela vida - não viveu.

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