De beleza, o mundo em que
vivemos, afirma António Barreto, é indiscutível. E os anos passados, feito o
balanço, é inegável que os horrores que os povos sempre viveram são sonegados a
favor do contributo que deram para que as gerações seguintes vivessem melhor. E
o que resta desses tempos, desses povos, são as belezas que deixaram, os
monumentos que criaram, os conceitos que ensinaram, os progressos que
protagonizaram, os homens, apenas átomos sofredores ou desfrutadores de
delícias, perdidos no tempo. As perfídias que se partilharam foram em parte
compensadas pelos actos de generosidade, de altruísmo dos que se afligiram com
o Mal do Mundo e tentaram diminuí-lo.
É no “Candide” de Voltaire que o Mal e o Bem
se sucedem, em ritmo perfeitamente alucinante e grotesco, no intuito sardónico
do seu autor de mostrar quanto as teorias optimistas do “melhor dos mundos”
na expressão do sábio Pangloss são constantemente postas em causa, nas
surpresas monstruosas das realidades sofridas pelo cândido e apaixonado herói
Candide e todos aqueles que ama, causadas pelos elementos naturais ou pela má
formação dos homens que têm poder e o julgam perene. E assim será sempre.”
Candide” conclui com a conhecida fórmula mágica “Il faut cultiver notre jardin”,
o trabalho sendo o antídoto contra a infelicidade.
É certo que, com a evolução, a
máquina hoje substitui o homem, o trabalho torna-se cada vez mais difícil de
obter, o desemprego sobe, o que é causa da infelicidade humana maior, ligado
que está à realização pessoal e à sobrevivência. Sem horta para cultivar,
exploramos teorias e gritamo-las aos sete ventos, revolucionários exigentes no nosso
canto do mundo, enquanto os mais eficientes usam outros métodos mais esconsos
na conquista dos seus valores ambíguos. Tudo isso que descreve António Barreto
no seu “O mundo que criámos” e
que é aterrador, de tão lúcido, sem esperança para os que nos seguem, o que é monstruoso.
Mas não será assim. O Bem
continuará visível – e em cada bebé que nasce uma esperança e uma felicidade
grande dominam. O espectro aterrador de uma Terra a secar, com o ar a tornar-se
irrespirável – horror que Voltaire não previu – talvez não venha a
concretizar-se.
Senhor, dá-nos o ar e a água
para o pão nosso de cada dia… concede que, do que vivemos hoje de mau, se salde,
nos séculos vindouros, apenas a beleza de tudo o que se soube criar de bom.
E o texto de António Barreto é
bem um pedaço de excelente prosa pensada, de uma experiência vivida, que ficará
na História para conhecimento disto que somos hoje.
O mundo que criámos
António Barreto
DN, 20/11/16 - « Sem Emenda»
O
mundo que nós fizemos é fonte inesgotável de amor e decência. De honra e
bondade. De beleza e inteligência. Mas também é verdade que a sociedade que
criámos, com similares contributos de todas as correntes políticas, exibe
abundantes razões de infelicidade e desespero.
Substituímos
a liberdade e os direitos individuais pelos direitos colectivos e sociais.
Destruímos o ethos do trabalho, em troca da obsessão da competitividade.
Habituámo-nos à desigualdade social e ao desemprego crónico. Não denunciamos o
racismo dos outros pelo risco de sermos nós apelidados de racistas. Aceitamos a
vigilância dos indivíduos pelo Estado. Cultivamos a transparência, mas
destruímos a privacidade. Deixamos que a vida cultural obedeça às regras da
publicidade e da propaganda.
Fomos
brandos perante ideias nefastas. A noção de que a identidade nacional é
fantasia reaccionária. A certeza de que a igualdade é fonte de liberdade. A
crença de que o sistema democrático gera sempre a liberdade. A convicção de que
basta querer para que um pobre e um desempregado deixem de o ser. A certeza
contrária: se um pobre e um desempregado são o que são, é por culpa da
sociedade.
Criámos
uma sociedade de direitos sem mérito, de garantias sem esforço e de privilégios
sem valor. Dissemos a todos que podiam aspirar a tudo, à gratuitidade, à
assistência, à estabilidade vitalícia, a toda a educação, cultura e ciência e
criámos classes médias prontas para tudo, desde que o consumo seja ilimitado e
o crédito infinito. Fomentámos a substituição da família pela escola. Demos à
política o direito de tudo dominar, a economia, a cultura, a ciência e a moral.
Dissemos
a muitos que podiam aspirar a tudo o que quisessem, que podiam ser imensamente
ricos, que a imaginação, a força e o êxito eram os grandes critérios de
triunfo, que a especulação era permitida e a ambição festejada! Fizemos ricos,
bilionários e proprietários disformes capazes de tudo e convencidos de que
podem enganar e esmagar quem contrarie tão ilustres seres. Desprezámos quem
ganhou dinheiro, quem quis ganhar dinheiro e quem quis subir na vida. Não
soubemos distinguir entre ganhar dinheiro de forma decente e honesta e acumular
dinheiro de modo corrupto e desonesto.
Fizemos
ou deixámos fazer um Estado monstruoso. Uma carga de impostos desmoralizadora.
O despotismo do Estado democrático. A indiferença perante o endividamento. O
favorecimento pelo Estado de negócios ilícitos, favoráveis aos amigos. A
promiscuidade e a corrupção inevitáveis. A ideia de que o dinheiro não tem
pátria, odor ou origem. A transformação do partido político em casta de
sacerdotes da democracia. A tolerância perante a corrupção, a mentira e a
promiscuidade.
A
substituição de valores de identidade nacional por abstracções internacionais.
A intolerância perante os diferentes, os outros e os que não pensam como nós. O
mau convívio com as religiões. A ficção democrática da União Europeia e o
embuste do défice democrático e dos falsos remédios para o curar. A dependência
da Europa parasita dos Estados Unidos em tudo o que respeita à defesa.
Em
nome da competitividade, deixámos destruir empregos estáveis e decentes e
aproveitámos as piores condições de trabalho e de vida dos países pobres e das
ditaduras. Queixamo-nos da globalização, que gostaríamos de travar, lamentando
os desempregados europeus, sem preocupação pelas centenas de milhões de
asiáticos que devem à globalização a sua sobrevivência e que deixaram de morrer
de fome.
Populistas,
nacionalistas, reaccionários, comunistas e revolucionários: criámos os
espectros que nos ameaçam. Ou deixámos criar.
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