Os dados que Alberto Gonçalves
fornece sobre a carta da jovem que a dirigiu ao PR são bem prova de um estereótipo
educacional/social que há muito se instalou entre nós, portugueses educados na
consciência da nossa importância reivindicativa de direitos, igualdades e
liberdades que uma esquerda (e não só) fantasista e falsamente preocupada, no
desprezo pela pátria, e no calor do seu ódio partidário, nos vem impingindo,
com canções alusivas, de gaivotas e papoilas surrealistas de asas de vento e coração de mar, as primeiras, de grito
vermelho as segundas, más influências, piegas e perversas, sobre a modelagem
dos caracteres humanos que, embora liricamente, se lhes querem equiparar, “como
elas, livres de crescer”. E não crescem mentalmente, porque nunca se lhes
disse que na vida adulta não encontrarão igual protecção à que se lhes forneceu
na idade escolar, e se lhes permite a
liberdade de reivindicar e acusar e auto vitimizar sem pejo, maneira,
muitas vezes, de se exibirem e obterem a nomeada pública frívola e ridícula de que
os media são ruidosamente responsáveis.
A carta de Alberto Gonçalves é
mais um dos seus retratos de desmontagem de comportamentos, manta de retalhos de
saber, experiência de vida e sentido crítico numa argumentação perfeitamente
lógica em que a ironia naturalmente se alia a uma seriedade da intenção didáctica,
que duvido que atingirá os seus fins.
Que um sonho de menina como argumento
exprobatório, convertido em lágrimas de acusação, sem olhar os outros mais casos,
que por duas décimas repetiram o ano, numa vontade de vencer e ultrapassar
corajosamente a barreira imposta, além das razões de amor por uma pátria “limpa?”,
não me parecem marcas de racionalidade mas antes de pieguice inadequada.
E daí, não sei. Que o nosso PR
também paira muito nessas esferas mediáticas e acudir a uma donzela dolorida
dar-lhe-ia uma projecção de sucesso. Mesmo
que acabasse estatelado, como o Dom Quixote. Seria um estatelamento temporário,
pausa para se refazer. E continuar.
Carta à jovem que escreveu uma
carta ao prof. Marcelo
Alberto Gonçalves
DN, 0/10/16
Cara Maria (se quiser, acrescento o "dra.": a
julgar pelos exemplos que chegam das franjas do governo, o título dispensa licenciaturas),
soube que escreveu ao Presidente da República. Infelizmente, apanhou-o em
Havana, em cordial visita à nomenclatura de psicopatas locais. Felizmente, o
conteúdo da carta caiu nas páginas da Visão e facilitou a exposição do drama da
Maria ao país inteiro.
Resumindo muito, a Maria conta que "sonhou"
(cito) ser médica desde pequenina e que, por causa de umas décimas na nota de
candidatura, não conseguiu entrar em nenhuma universidade portuguesa. Por isso,
tenta hoje aceder a uma universidade espanhola. Nada de especial. O problema é
que, logo de seguida, a Maria salta dos factos para as lamentações.
Pelos vistos, há um "sistema injusto" que a
impede de cumprir a ambição académica. Não duvido. Sucede que a
responsabilidade pelo dito cabe justamente à corporação dos médicos que a Maria
admira: a pretexto da qualidade, a zelosa vigilância do numerus clausus nos
cursos em causa trata de regular a quantidade de profissionais e assim
preservar o "prestígio" perdido por outras profissões com excesso de
oferta e consequente desemprego. Não ficou claro se a ideia da Maria é
acabar com selecção tão restrita. Se for, peço-lhe que depois não escreva
cartas a queixar-se de que, aliás à semelhança de quase toda a gente, corre o
risco de não arranjar trabalho.
Se, pelo contrário, a Maria concorda com o numerus
clausus e apenas discorda da avaliação que a rejeitou, aí o caso complica-se. À custa dos salamaleques exibidos pelos papás
contemporâneos, percebo que os jovens da geração - e, suponho, do meio
social da Maria - cresçam sob a ilusão de que o mundo é um lugar fácil e está
ganho à partida. Não é e não está. A verdade é que a Maria se sujeitou a
provas e, segundo critérios "exclusivamente científicos" (o
desplante!), perdeu para uma data de colegas. "Quem é que avalia o
lado humano?", pergunta a Maria. Ninguém, por ser um conceito vago
e, em última instância, insusceptível de medição. Se não fosse, também ninguém
garante que o "lado humano" da Maria lhe concederia a vaga que
procura. Os argumentos que a Maria apresenta para justificar a admissão
("Porque eu quero, porque eu mereço, porque eu preciso") não são
especialmente portentosos. Nem compatíveis com a visão, algo ornamentada, que a
Maria tem do ofício ("Ser médico é ser-se astuto, perspicaz, responsável, sensato
e sensível").
Mas o maior equívoco da Maria prende-se com o patriotismo. Embora continue com hipóteses de estudar medicina em
Espanha, a Maria chora ("Por muito difícil que seja, se o meu país não me
concede a oportunidade de me formar onde nasci e onde pertenço, vou ter de
pertencer a outro lado") a sua eventual saída do nosso "país,
lindo, limpo, seguro, organizado". Aparentemente, a Maria imagina-se
na Suíça e não tenciono desenganá-la. Limito-me a dizer-lhe que a piedosa
curiosidade dos media sobre os compatriotas que abalavam para o estrangeiro em
fuga da "austeridade" terminou no momento em que a malvada
"direita" cedeu o poder à benévola extrema-esquerda. Além
disso, mesmo que na altura os media não o referissem, ir para fora não é uma
condenação: com frequência, é uma oportunidade e, dado o actual rumo da pátria,
uma bênção, que se calhar lá mais para a frente a Maria agradecerá com fervor.
Entretanto, Maria, dou-lhe um conselho: tenhamos ou não
carência de médicos, estamos atafulhados de péssimos retóricos, pelo que não
abuse do lirismo, ou do "lado humano" em detrimento do científico.
Esqueça o "estetoscópio de plástico amarelo e verde de brincar" e a
"mochila cheia de sonhos e vontades e ideias e dedicação". Esqueça, o
quanto puder, os sonhos. A lengalenga do "pelo sonho é que vamos"
abstém-se de informar que a maioria de nós não vai longe, ou no mínimo não vai
onde pensou ir. Por regra, as "vontades", as "ideias" e a
"dedicação" cedem aos repetidos confrontos com a realidade. E a
realidade não se preocupa com o futuro da Maria. É possível que a Maria venha a
ser médica, excelente ou deplorável. Não é impossível que venha a ser
farmacêutica, dona de casa, poeta bissexta, beneficiária do RSI ou, se o azar
lhe cair em cima, socióloga. Apesar dos esforços paternos em protegê-la, Maria,
a existência é uma sucessão de imprevistos.
O engraçado é que, com meros 17 ou 18 anos, a Maria pensa
como um português crescido, convencido de que compete ao Estado
providenciar-lhe uma vida. Erro seu, minha cara, e dos portugueses crescidos. A
solitária competência do Estado consiste em humilhar cidadãos e subtrair-lhes
dinheiro. O resto, por cá, em Espanha ou na Quirguízia, é consigo e com o
acaso. Perceber esta evidência é alcançar a responsabilidade que a Maria inclui
entre as virtudes dos melhores médicos. E das melhores pessoas.
Despeço-me agora, Maria. Faz-se tarde e ainda me falta
pedir ajuda ao prof. Marcelo (espero não o apanhar na Coreia do Norte) para
realizar o meu sonho de infância: ser astronauta. Por enquanto, só consegui ser
colunista. Colunista e hipocondríaco. Até já, doutora.
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