Afinal, quando se trata de puxar pelos galões,
todos somos frágeis na compostura. Em todo o caso, não condeno o comissário
francês que muito justamente achou que, o Reino Unido retirando-se da União
Europeia, justo seria que fosse abolida a sua língua no trato entre os demais
participantes e escolhida a língua francesa como a de mais peso nas línguas
universais, pela irradiação cultural de uma nação que tanto contribuiu para a
evolução do mundo.
Como sempre, são de seriedade e preocupação,
aplicadas a uma temática da actualidade histórica, os artigos de Teresa de
Sousa, plenos de conhecimento e da necessária subjectividade que transformam
cada escrito seu num prazer de leitura, quase romanceada em termos de suspense
policial. Neste seu artigo, é o Brexit o tema, à roda do qual gira uma crise de
comportamento entre os parlamentares europeus, criando o vazio ou o evasivo nas
discussões, desamparados uns e outros pelo parceiro trânsfuga, que os
abandonou, sobranceiro e soberano no seu separatismo isolacionista, mas ainda
exigente de homenagem. Causador de mal-estar, sem dúvida, e desfazendo um acordo comercial importante para todos, com
o Canadá. Para além do mais, sugerindo uma ligação à Rússia de Putin, que anda numa
escalada de preponderância preocupante. A
menos que seja de pura solidariedade
fraterna, com os povos do lado de cá da sua cortina. E eu que não desisti ainda
de viajar no transiberiano para conhecer as estepes nevadas das cavalgadas do
Doutor Jivago nessa Revolução Russa, poetizada e percorrida pelo inesquecível tema
“Lara”!
Negociar em francês ou a
“doença infantil” do "Brexit"
Público. 23/10/2016
1. O
Conselho Europeu da passada semana foi mais uma demonstração de que nenhuma das
crises que constituem a crise europeia está em condições de encontrar um
caminho de resolução. Como começa a ser hábito, os líderes europeus
tentam afastar da agenda das cimeiras os problemas em que um acordo é
impossível, procurando uma ou outra área de consenso que disfarce as divisões
cada vez maiores. Desta vez, nem essa regra funcionou. Donald Tusk insistia
em que o Brexit não estava na agenda. Pura ilusão. O Brexit é o elefante na
sala de qualquer cimeira desde o referendo. Era a estreia de Theresa May.
Obviamente que ocupou o devido espaço, dentro e fora da sala. E não foi
propriamente um bom começo. O tom duro e ameaçador que cada lado da barricada
resolveu adoptar não é mais do que uma tentativa para disfarçar que, de um lado
e de outro, não há qualquer estratégia que faça sentido para tentar resolver
com prudência e com visão esta separação extremamente difícil e extremamente
danosa para ambas as partes.
May
chegou a Bruxelas trazendo consigo os ecos do discurso que fez na Conferência
dos tories, com uma linguagem extremista sobre os “estrangeiros” e a promessa
de uma negociação “dura”. O que mais irritou os seus pares foi
ter dito que, até à consumação da saída, estará sentada na mesa do Conselho
Europeu com todos os seus direitos. Esta afirmação, que à luz dos tratados é
bastante óbvia, foi entendida como uma ameaça injustificável de um país que não
quer viver na União, mas quer influenciar a sua agenda como se vivesse. François
Hollande, que lidera a cavalaria contra a Pérfida Albion, respondeu com a mesma
moeda, desta vez acompanhado pela chanceler. May não teve um bom acolhimento,
como se previa. O seu gabinete lembra, no entanto, que houve conversações
amistosas com Paris e Berlim sobre a Rússia e sobre a Síria. Várias vozes têm
sublinhado que a radicalização britânica teve o efeito raro de unir os outros
27, mesmo aqueles que, como a Holanda, estavam mais próximos de Londres. Não
vale a pena ter grandes ilusões. Esta “unidade” pode não durar muito porque o
mais provável é que cada país tente “negociar” o seu próprio acordo “bilateral”
com os britânicos, porque os problemas não são todos iguais. Portugal, por
exemplo, forneceu ao SNS britânico muita gente qualificada cujo destino quer
garantir. O governo de May já anunciou que também quer “britanizar” os
hospitais. O grau de loucura parece não ter limites. O primeiro-ministro
holandês Mark Rutte, o melhor amigo de Cameron, juntou-se ao coro dos seus
colegas por uma negociação “dura” e a razão é simples. Rutte vai enfrentar
eleições a curto prazo e tudo o que não quer é ver um movimento pró-Nexit a
contaminar o debate. Basta lembrar que Geert Willders, o líder do partido
populista e xenófobo, ombreia nas sondagens com os liberais. Rutte já está
metido em trabalhos, com o referendo que se lembrou de convocar para ratificar
o acordo de associação da União Europeia com a Ucrânia. Os governos europeus
teimam em não perceber que o referendo é a arma mais poderosa dos populismos,
mesmo que a História esteja cheia de exemplos.
2. Do lado de cá, digamos que a “infantilidade”
europeia veio ao de cima nalgumas atitudes completamente gratuitas. A última
coube ao comissário francês Michel Barnier (um homem ponderado), que será o
responsável pelas negociações e que resolveu anunciar que elas vão decorrer em
francês. Nem vale a pena lembrar que, em Bruxelas, a língua
“comum” é o inglês. E não é pela saída do Reino Unido que a língua francesa vai
retomar o espaço perdido nas últimas décadas. A segunda foi o Parlamento
Europeu ter escolhido o antigo primeiro-ministro belga, o liberal Guy
Verhofstadt, velho campeão antibritânico que continua a defender uma Europa
federal (sem os ingleses, naturalmente) em que o Conselho Europeu seria o
Senado e a Comissão o governo. É como pôr uma capa vermelha à frente do touro.
Por mais bem-intencionado que seja, a Europa já não está aí há muito tempo e
não foi culpa dos ingleses. No show-off francês para demonstrar que a expulsão
da Pérfida Albion vai devolver a Paris o seu papel de liderança na Europa, já
nem os franceses acreditam.
3. E isso leva-nos ao fracasso do objectivo mais visível da
cimeira, que toda a gente achava que ia correr bem: a aprovação do CETA, um
acordo de comércio livre de última geração entre a Europa e o Canadá, que
deveria ser assinado na próxima quinta-feira e cuja importância económica e estratégica
é geralmente reconhecida. Seria, de resto, um sinal importante para mostrar que
a Europa, o maior bloco comercial do mundo, estava a resistir à ofensiva
proteccionista que ataca as democracias ocidentais (incluindo os EUA). Mais uma
vez, é a obsessão pela democracia referendária, aqui com um novo formato:
sujeitar acordos internacionais à vontade de uma região. As
declarações emocionadas da ministra canadiana responsável pelas negociações,
quando decidiu na sexta-feira regressar a casa, valem por mil palavras. Disse
ela que não valia a pena ficar porque não lhe parecia que Europa estivesse
“neste momento” em condições de assinar este (ou qualquer outro) acordo de
comércio, mesmo quando se tratava de um país com os mesmos valores e as mesmas
preocupações sociais e ambientais, como é o Canadá. A CETA representava, de
algum modo, a antecipação do TTIP. NA CETA é a Valónia, no TTIP são alguns
governos europeus, como o francês que já o deu como morto e enterrado. São
muitos mais, felizmente, os que consideram que é preciso acelerar as
negociações ao máximo, antes do fim da Administração Obama. Do ponto de vista
económico, seria uma grande vantagem para os dois blocos. Do ponto de vista
estratégico é ainda mais importante. Como diz Augusto Santos Silva, a centralidade
do Atlântico Norte é fundamental para a Europa, em termos “económicos e
políticos”, para equilibrar a viragem dos Estados Unidos para o Pacífico. A
pressa está em que a campanha eleitoral americana revelou até que ponto há uma
forte tendência para o proteccionismo na opinião pública americana, de que
Trump foi a expressão máxima. Hillary já teve de fazer algumas cedências,
deixando a defesa da abertura dos mercados sem verdadeiros defensores.
4. Falta só dizer
que é preciso um entendimento urgente sobre a Rússia. É verdade que a
Europa não deve cair na armadilha da escalada que Putin montou. A sua última
manifestação foi a passagem de uma frota naval liderada pelo porta-aviões
Kuznetsov ao largo da costa inglesa, rumo ao Mediterrâneo Oriental e à Síria.
As provocações sucedem-se para testar a resistência europeia e americana.
Alepo, por quem já ninguém chora, é o retrato do nacionalismo agressivo de
Putin. Não é fácil encontrar uma estratégia que evite a escalada, mas que não
dê a ideia de que os europeus acabarão por se dividir e baixar a cabeça. Infelizmente,
há hoje na cena política europeia cada vez mais amigos de Putin. Também
aqui faltou um acordo embora se esteja ainda longe de uma cedência.
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