Não resisto a guardar os textos dos virtuoses da palavra e
do pensamento, neste acontecimento que, inicialmente expoente de farsa, poderá
tornar-se em factor de enorme tragédia no mundo da globalização de pontos
interligados na malha apertada das respectivas dependências. Com uma filosofia
de optimismo sobre as relatividades incontornáveis, lembro quanto os Estados
Unidos foram parte influente nas descolonizações dos anos sessenta e setenta, e
recordo o assassinato de Kennedy, que lamentei por ter filhos tão pequenos, mas,
nos rancores sentidos, achei que o mundo não perdera grande coisa, apesar da
bonita figura que tinha, mais a sua Jacqueline, que não tardaria a recompor-se,
fazendo-se à vida, calando escrúpulos do politicamente ou eticamente correcto.
A tragédia das descolonizações foi o fim do nosso mundo, então, e se o burgesso
D. Trump tivesse aparecido na altura, talvez o mundo não tivesse dado a cambalhota
que tanta gente destruiu, perante a indiferença e até o ódio geral que explodia
em alaridos contra os fascistas e os colonizadores. Mas o mundo de então não
pertencia ainda ao Trump, que as sociedades apaixonadas de ideal estavam em plena
garra reivindicativa de mudanças, muitas delas caricatas, coisa de que talvez
se tenham fartado as pessoas menos iluminadas pelos saberes da generosidade
universal canalizada para as liberdades que vão destruindo valores de par com a
destruição das fronteiras. O resultado dessas convulsões passadas, aí está, nas
invasões presentes, que vão alastrando pelo mundo, de par com as chacinas que pouco importaram
aos Kennedys das revoluções no mundo. E o Trump é consequência da insatisfação
dos humilhados e ofendidos, que assistem ao enriquecimento cada vez mais
efectivo dos que sabem como enriquecer, e ao empobrecimento cada vez mais
igualmente efectivo dos tais que não se podem defender, por muita trapaça estridente
que surja do lado dos seus apoiantes, que se acham heróis por reporem 10 euros
nos seus ordenados pequenos. Mas julgo que Trump faz parte dos que souberam
como enriquecer, e penso que os que o apoiaram não foram só os tais humilhados,
mas os outros de idêntico carisma ganhador – daí a sua brilhante vitória.
Trump vai continuar a ser tema
de debate e de escrita, e os da esquerda estão sinceramente assustados com a
hipótese de ruína das tais conquistas democráticas, se não houver contra-poder
a desfeiteá-lo..
Tudo isto não passa de
tergiversações mais que ultrapassadas, leiamos antes a crónica ponderada de
João Miguel Tavares ou o estudo brilhante de Francisco Assis. E esperemos.
Do “fuck it!” ao “what the fuck?!?”
Público, 10/11/2016
No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular
derrota do jornalismo.
Hillary Clinton não foi a maior derrotada na
madrugada de quarta-feira. À frente dela estão as empresas de sondagens. E à
frente das empresas de sondagens estão os jornais, as televisões (a certa
altura, até a Fox News se afastou de Trump), e basicamente todos nós, que
trabalhamos na comunicação social. Uma lição para o falecido Emídio Rangel:
sim, Donald Trump transformou-se numa figura nacional através da televisão;
sim, a televisão deu-lhe muita atenção no início da corrida, quando parecia não
ser mais do que o comic relief republicano; mas não, a televisão não
consegue vender presidentes da República como quem vende sabonetes.
Trump
foi destruído, gozado, arrasado, por tudo o que é revista e jornal; foi
transformado numa caricatura patética por Alec Baldwin no Saturday Night
Live e humilhado nos melhores talkshows. Entre as 200 principais
publicações americanas, apenas seis apoiaram Trump. A comunicação social
acompanhou obsessivamente a “locker room talk”, mais a dúzia de mulheres que testemunhou
que Trump as tinha efectivamente assediado. Nada disso importou para a
América branca, rural e pouco habilitada, que votou em massa no candidato menos
qualificado da história das presidenciais americanas.
Porquê?
Não vale a pena procurar uma razão muito precisa e circunscrita. Não foi a
presença de Obama, que continua a ter bastante popularidade. Não foram
os e-mails. Não foi o FBI. Foi um grande, enorme, gigantesco “fuck it!”
– um voto anti-sistema de quem está profundamente zangado com a nova América e
saudoso da velha (sete em cada dez apoiantes de Trump preferem os anos 50 ao
mundo actual). Quase dois terços dos votantes declararam que Trump não tinha o
temperamento certo para ser Presidente dos Estados Unidos. Ainda assim, 20%
desses americanos votaram nele. Preferiram quebrar o sistema, até porque não
acreditam que seja possível corrigi-lo. E quando se trata de partir, Donald
Trump é o homem certo.
Aquilo
que os democratas jamais esperaram é que o eleitorado republicano ficasse imune
a meses de infindáveis editoriais, artigos de opinião, ensaios, reportagens,
debates televisivos e belos sketches humorísticos a sublinhar a
fraude que Donald Trump era (e é). Daí que os democratas tenham
escrito nas suas caras um grande, enorme, gigantesco “what the fuck?!?” – sim,
havia algumas hipóteses de Trump ganhar, mas ninguém acreditava nisso. Os
jornalistas gostam de olhar para si próprios como um contrapoder, mas
frequentam os mesmos restaurantes dos políticos, vivem no mesmo ecossistema,
usam os mesmos talheres. E dentro desse quadro mental – que também é o meu –
não havia forma de Donald Trump vencer as eleições depois de tudo aquilo que
disse e fez.
Nesse
aspecto, somos todos um pouco cavaquistas: confrontado com os mesmos factos,
qualquer cidadão deveria chegar à conclusão de que Trump era imprestável. E,
de facto, entre os leitores do New York Times, Hillary Clinton arrasou
Donald Trump. O problema é que 50% dos eleitores americanos não só
estavam fora desse quadro mental liberal, qualificado e endinheirado, como o
odiavam profundamente. Trump nunca se cansou de repetir que o sistema
estava viciado e que a comunicação social comungava do vício. A mensagem
passou: 60 milhões de americanos ignoraram olimpicamente tudo o que viram,
leram e ouviram ao longo de ano e meio. Não admira o ar de defunto da
comunicação social. No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular
derrota do jornalismo.
Vitória de Trump é um choque
para quem respeita a solidez das instituições dos EUA
Público, 10/11/2016
As elites americanas não vão desaparecer e terão um
papel na limitação dos danos.
Tópicos:
Hillary
Clinton Nelson Mandela PS Thomas
Jefferson Donald Trump Eleições
EUA 2016 Partido Democrata Partido
Republicano Câmara dos Representantes
Por
volta dos anos trinta do século passado um jornalista francês descreveu os
Estados Unidos da América como “ o único país que passou da barbárie à
decadência sem ter transitado pela civilização “. Sabemos que
essa frase não corresponde à realidade e que se limita a reproduzir um
sentimento anti-americano que já naquela altura se manifestava, e ainda hoje
prevalece, em largos sectores da sociedade francesa. Os Estados Unidos
têm uma longa tradição democrática, consubstancial à sua própria génese
nacional, e em vários momentos decisivos da história contemporânea enfrentaram
com sucesso perigosas ameaças de índole totalitária. Como todas as democracias
comporta uma dose de pluralismo ideológico, político e social que implica a
rejeição de uma visão monista do regime político norte-americano. Um autor
como Walter Russell Meade distingue mesmo quatro sensibilidades que terão
marcado a história política dos Estados Unidos associando-as à personalidade de
quatro dos seus mais importantes Presidentes: Thomas Jefferson,
Alexander Hamilton, Andrew Jackson e Woodrow Wilson. É também
conhecida a importância de uma certa tradição populista - conceito aqui usado
sem qualquer valoração axiológica - na história americana, tradição essa muito
ligada a um discurso onde o elemento democrático subjugava a componente
liberal, quer no plano político, quer no plano cultural, e até mesmo económico.
A
vitória ontem alcançada por Donald Trump devendo ser lida neste pano de fundo
histórico bastante complexo não deixa de constituir um enorme choque para
todos quantos em todo o mundo aprenderam a respeitar a solidez das instituições
norte-americanas. Trump é de tal modo boçal, vulgar e patético que um
cronista do El País não hesitava há alguns dias em dizer que, à sua beira, o
próprio Berlusconi possuía a solenidade de Charles de Gaulle, a inteligência de
Winston Churchill, a sagacidade de Nelson Mandela e o tacto da rainha de
Inglaterra.
Ao
longo dos últimos anos Trump foi ocupando uma parte do espaço público
norte-americano beneficiando das características peculiares deste último
propensas à valorização da sua personalidade histriónica e narcisista. Não
se lhe conhece um pensamento político minimamente elaborado em relação ao que
quer que seja, nem na política interna nem na componente internacional. A sua campanha
ficou assinalada por uma sucessão de insultos, de declarações a raiar o
paranóico, de considerações xenófobas, racistas e sexistas. A dado passo, dando
provas de sordidez moral, admitiu pôr em causa os resultados eleitorais caso
fosse derrotado. O seu discurso, em certos momentos, aflorou mesmo uma
linguagem de natureza tipicamente proto-fascista. Não caiamos na tentação de
desvalorizar as óbvias insuficiências políticas, intelectuais e éticas deste
vendedor de ilusões sem categoria.
Se
nada de bom há a esperar do Presidente eleito resta-nos confiar na força das
seculares instituições democrático-liberais norte-americanas. Ao seu
isolacionismo político e económico baseado na exaltação de um nativismo
perigoso poderá e deverá opor-se um Congresso onde pululam
Senadores e membros da Câmara dos Representantes imbuídos de um pensamento
político radicalmente contrário. Entre os eleitos pelo Partido
Republicano há muitos defensores da necessidade de celebração de tratados
comerciais internacionais e de uma presença activa do seu país na cena política
internacional. Na altura própria farão, decerto, ouvir a sua voz. O
Partido Democrata, saindo derrotado, não deixará de exercer uma enorme
influência no debate político procurando, sobretudo nesta fase, salvaguardar a
preciosa herança da Administração Obama. As elites americanas, momentaneamente
tão violentamente atacadas à esquerda e à direita, não vão desaparecer e
poderão, corrigindo alguns erros ultimamente cometidos, ter um papel importante
na limitação dos danos eventualmente provocados pela Presidência.
Nas
últimas horas surgiram múltiplas teorias para explicar o improvável
acontecimento ocorrido. Para uma parte substancial da direita a vitória de
Trump assenta numa reacção da maioria da população branca que se sentiria
ameaçada pelo avanço das comunidades afro-americanas e latinas. Estaríamos,
assim, perante uma motivação assente num princípio de diferenciação étnica que,
no limite, remete para uma atitude puramente racista. Para uma certa
esquerda extremista, que infelizmente no nosso país começa a integrar alguns
sectores ainda relativamente marginais do próprio PS, tudo radica em factores
exclusivamente económicos que têm que ver com o fenómeno da globalização.
A
explicação parece-me bem mais complexa e não excluindo os factores atrás
referidos vai muito para além deles. Têm que ver, entre outras coisas, com a
dissolução de valores cívicos tradicionais, com a hegemonia adquirida pelas
redes sociais na formatação do debate no espaço público, com uma certa infantilidade
com que lidamos com a revolução tecnológica digital e com a redução da
espessura do indivíduo à sua manifestação estritamente narcísica. Tudo
isto apela a respostas simplistas e a soluções de liderança aparentemente
salvíficas e não raras vezes dotadas de um certo carisma circense. O que
tornou a noite de ontem especialmente obscena foi o facto dos americanos se
terem despedido desta forma de um dos maiores Presidentes da sua História e da
mais importante figura política mundial do início do século XXI.
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