quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Os tempos e os modos



Não resisto a  guardar os textos dos virtuoses da palavra e do pensamento, neste acontecimento que, inicialmente expoente de farsa, poderá tornar-se em factor de enorme tragédia no mundo da globalização de pontos interligados na malha apertada das respectivas dependências. Com uma filosofia de optimismo sobre as relatividades incontornáveis, lembro quanto os Estados Unidos foram parte influente nas descolonizações dos anos sessenta e setenta, e recordo o assassinato de Kennedy, que lamentei por ter filhos tão pequenos, mas, nos rancores sentidos, achei que o mundo não perdera grande coisa, apesar da bonita figura que tinha, mais a sua Jacqueline, que não tardaria a recompor-se, fazendo-se à vida, calando escrúpulos do politicamente ou eticamente correcto. A tragédia das descolonizações foi o fim do nosso mundo, então, e se o burgesso D. Trump tivesse aparecido na altura, talvez o mundo não tivesse dado a cambalhota que tanta gente destruiu, perante a indiferença e até o ódio geral que explodia em alaridos contra os fascistas e os colonizadores. Mas o mundo de então não pertencia ainda ao Trump, que as sociedades apaixonadas de ideal estavam em plena garra reivindicativa de mudanças, muitas delas caricatas, coisa de que talvez se tenham fartado as pessoas menos iluminadas pelos saberes da generosidade universal canalizada para as liberdades que vão destruindo valores de par com a destruição das fronteiras. O resultado dessas convulsões passadas, aí está, nas invasões presentes, que vão alastrando pelo mundo,  de par com as chacinas que pouco importaram aos Kennedys das revoluções no mundo. E o Trump é consequência da insatisfação dos humilhados e ofendidos, que assistem ao enriquecimento cada vez mais efectivo dos que sabem como enriquecer, e ao empobrecimento cada vez mais igualmente efectivo dos tais que não se podem defender, por muita trapaça estridente que surja do lado dos seus apoiantes, que se acham heróis por reporem 10 euros nos seus ordenados pequenos. Mas julgo que Trump faz parte dos que souberam como enriquecer, e penso que os que o apoiaram não foram só os tais humilhados, mas os outros de idêntico carisma ganhador – daí a sua brilhante vitória.
Trump vai continuar a ser tema de debate e de escrita, e os da esquerda estão sinceramente assustados com a hipótese de ruína das tais conquistas democráticas, se não houver contra-poder a desfeiteá-lo..
Tudo isto não passa de tergiversações mais que ultrapassadas, leiamos antes a crónica ponderada de João Miguel Tavares ou o estudo brilhante de Francisco Assis. E esperemos.
  
Do “fuck it!” ao “what the fuck?!?”
Público, 10/11/2016 
No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do jornalismo.
Hillary Clinton não foi a maior derrotada na madrugada de quarta-feira. À frente dela estão as empresas de sondagens. E à frente das empresas de sondagens estão os jornais, as televisões (a certa altura, até a Fox News se afastou de Trump), e basicamente todos nós, que trabalhamos na comunicação social. Uma lição para o falecido Emídio Rangel: sim, Donald Trump transformou-se numa figura nacional através da televisão; sim, a televisão deu-lhe muita atenção no início da corrida, quando parecia não ser mais do que o comic relief republicano; mas não, a televisão não consegue vender presidentes da República como quem vende sabonetes.
Trump foi destruído, gozado, arrasado, por tudo o que é revista e jornal; foi transformado numa caricatura patética por Alec Baldwin no Saturday Night Live e humilhado nos melhores talkshows. Entre as 200 principais publicações americanas, apenas seis apoiaram Trump. A comunicação social acompanhou obsessivamente a “locker room talk”, mais a dúzia de mulheres que testemunhou que Trump as tinha efectivamente assediado. Nada disso importou para a América branca, rural e pouco habilitada, que votou em massa no candidato menos qualificado da história das presidenciais americanas.
Porquê? Não vale a pena procurar uma razão muito precisa e circunscrita. Não foi a presença de Obama, que continua a ter bastante popularidade. Não foram os e-mails. Não foi o FBI. Foi um grande, enorme, gigantesco “fuck it!” – um voto anti-sistema de quem está profundamente zangado com a nova América e saudoso da velha (sete em cada dez apoiantes de Trump preferem os anos 50 ao mundo actual). Quase dois terços dos votantes declararam que Trump não tinha o temperamento certo para ser Presidente dos Estados Unidos. Ainda assim, 20% desses americanos votaram nele. Preferiram quebrar o sistema, até porque não acreditam que seja possível corrigi-lo. E quando se trata de partir, Donald Trump é o homem certo.  
Aquilo que os democratas jamais esperaram é que o eleitorado republicano ficasse imune a meses de infindáveis editoriais, artigos de opinião, ensaios, reportagens, debates televisivos e belos sketches humorísticos a sublinhar a fraude que Donald Trump era (e é). Daí que os democratas tenham escrito nas suas caras um grande, enorme, gigantesco “what the fuck?!?” – sim, havia algumas hipóteses de Trump ganhar, mas ninguém acreditava nisso. Os jornalistas gostam de olhar para si próprios como um contrapoder, mas frequentam os mesmos restaurantes dos políticos, vivem no mesmo ecossistema, usam os mesmos talheres. E dentro desse quadro mental – que também é o meu – não havia forma de Donald Trump vencer as eleições depois de tudo aquilo que disse e fez.
Nesse aspecto, somos todos um pouco cavaquistas: confrontado com os mesmos factos, qualquer cidadão deveria chegar à conclusão de que Trump era imprestável. E, de facto, entre os leitores do New York Times, Hillary Clinton arrasou Donald Trump. O problema é que 50% dos eleitores americanos não só estavam fora desse quadro mental liberal, qualificado e endinheirado, como o odiavam profundamente. Trump nunca se cansou de repetir que o sistema estava viciado e que a comunicação social comungava do vício. A mensagem passou: 60 milhões de americanos ignoraram olimpicamente tudo o que viram, leram e ouviram ao longo de ano e meio. Não admira o ar de defunto da comunicação social. No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do jornalismo.

Vitória de Trump é um choque para quem respeita a solidez das instituições dos EUA
Público, 10/11/2016
As elites americanas não vão desaparecer e terão um papel na limitação dos danos.
Por volta dos anos trinta do século passado um jornalista francês descreveu os Estados Unidos da América como “ o único país que passou da barbárie à decadência sem ter transitado pela civilização “. Sabemos que essa frase não corresponde à realidade e que se limita a reproduzir um sentimento anti-americano que já naquela altura se manifestava, e ainda hoje prevalece, em largos sectores da sociedade francesa. Os Estados Unidos têm uma longa tradição democrática, consubstancial à sua própria génese nacional, e em vários momentos decisivos da história contemporânea enfrentaram com sucesso perigosas ameaças de índole totalitária. Como todas as democracias comporta uma dose de pluralismo ideológico, político e social que implica a rejeição de uma visão monista do regime político norte-americano. Um autor como Walter Russell Meade distingue mesmo quatro sensibilidades que terão marcado a história política dos Estados Unidos associando-as à personalidade de quatro dos seus mais importantes Presidentes: Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, Andrew Jackson e Woodrow Wilson. É também conhecida a importância de uma certa tradição populista - conceito aqui usado sem qualquer valoração axiológica - na história americana, tradição essa muito ligada a um discurso onde o elemento democrático subjugava a componente liberal, quer no plano político, quer no plano cultural, e até mesmo económico.
A vitória ontem alcançada por Donald Trump devendo ser lida neste pano de fundo histórico bastante complexo não deixa de constituir um enorme choque para todos quantos em todo o mundo aprenderam a respeitar a solidez das instituições norte-americanas. Trump é de tal modo boçal, vulgar e patético que um cronista do El País não hesitava há alguns dias em dizer que, à sua beira, o próprio Berlusconi possuía a solenidade de Charles de Gaulle, a inteligência de Winston Churchill, a sagacidade de Nelson Mandela e o tacto da rainha de Inglaterra.
Ao longo dos últimos anos Trump foi ocupando uma parte do espaço público norte-americano beneficiando das características peculiares deste último propensas à valorização da sua personalidade histriónica e narcisista. Não se lhe conhece um pensamento político minimamente elaborado em relação ao que quer que seja, nem na política interna nem na componente internacional. A sua campanha ficou assinalada por uma sucessão de insultos, de declarações a raiar o paranóico, de considerações xenófobas, racistas e sexistas. A dado passo, dando provas de sordidez moral, admitiu pôr em causa os resultados eleitorais caso fosse derrotado. O seu discurso, em certos momentos, aflorou mesmo uma linguagem de natureza tipicamente proto-fascista. Não caiamos na tentação de desvalorizar as óbvias insuficiências políticas, intelectuais e éticas deste vendedor de ilusões sem categoria.
Se nada de bom há a esperar do Presidente eleito resta-nos confiar na força das seculares instituições democrático-liberais norte-americanas. Ao seu isolacionismo político e económico baseado na exaltação de um nativismo perigoso poderá e deverá opor-se um Congresso onde pululam Senadores e membros da Câmara dos Representantes imbuídos de um pensamento político radicalmente contrário. Entre os eleitos pelo Partido Republicano há muitos defensores da necessidade de celebração de tratados comerciais internacionais e de uma presença activa do seu país na cena política internacional. Na altura própria farão, decerto, ouvir a sua voz. O Partido Democrata, saindo derrotado, não deixará de exercer uma enorme influência no debate político procurando, sobretudo nesta fase, salvaguardar a preciosa herança da Administração Obama. As elites americanas, momentaneamente tão violentamente atacadas à esquerda e à direita, não vão desaparecer e poderão, corrigindo alguns erros ultimamente cometidos, ter um papel importante na limitação dos danos eventualmente provocados pela Presidência.
Nas últimas horas surgiram múltiplas teorias para explicar o improvável acontecimento ocorrido. Para uma parte substancial da direita a vitória de Trump assenta numa reacção da maioria da população branca que se sentiria ameaçada pelo avanço das comunidades afro-americanas e latinas. Estaríamos, assim, perante uma motivação assente num princípio de diferenciação étnica que, no limite, remete para uma atitude puramente racista. Para uma certa esquerda extremista, que infelizmente no nosso país começa a integrar alguns sectores ainda relativamente marginais do próprio PS, tudo radica em factores exclusivamente económicos que têm que ver com o fenómeno da globalização.
A explicação parece-me bem mais complexa e não excluindo os factores atrás referidos vai muito para além deles. Têm que ver, entre outras coisas, com a dissolução de valores cívicos tradicionais, com a hegemonia adquirida pelas redes sociais na formatação do debate no espaço público, com uma certa infantilidade com que lidamos com a revolução tecnológica digital e com a redução da espessura do indivíduo à sua manifestação estritamente narcísica. Tudo isto apela a respostas simplistas e a soluções de liderança aparentemente salvíficas e não raras vezes dotadas de um certo carisma circense. O que tornou a noite de ontem especialmente obscena foi o facto dos americanos se terem despedido desta forma de um dos maiores Presidentes da sua História e da mais importante figura política mundial do início do século XXI.

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