segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Não há direito!



Tenho andado numa fona à procura desta canção da Maria de Lurdes Resende, que a nossa amiga trouxe ontem, escrita em Quelimane, 7/3/1956, segundo anotação sua, e que ontem a minha irmã e eu nos pusemos a entoar em surdina, por isso não audível no meio do ruído do café. Gostei. E quis copiá-la da Internet, mas outras lindas canções dela encontrei que não esta. Tive mesmo que a bater em computador, com o meu dedo indicador direito, avesso a longas tiradas, o que não foi o caso.
E pus-me a pensar nos avanços socioculturais, que apagaram - ou não chegaram a acender – uma canção dos tempos do “John, chauffeur russo” da Max du Veuzit que com tanto gosto líamos e nos fazia sonhar com os príncipes, conquanto a Maria de Lurdes Resende vá mais longe, à espera do rei, embora em falsa e orgulhosa expectativa irónica. Era no tempo da diferença de sexos e desigualdade de direitos, conceitos que as feministas e os feministas fizeram extinguir do mapa e é por isso que esta linda história de amor nos mostra uma mulher num plano soberano ao do homem – apesar do que se disse em contrário – o qual, naqueles tempos recitava juras de um amor eterno com muita firmeza, como ela mostra. Mas vê-se que as mulheres já nessa altura não criam neles, como esta canção revela, que a minha irmã e eu recriámos ontem, graças à nossa amiga que a trouxe dos confins do tempo, o que significa que a cantámos bem, como era nosso costume, quando arrumávamos o nosso quarto ou limpávamos o pó da sala aos domingos, alto e bom som, a ouvir-se na rua, não como agora que preferimos escutar na televisão ou nos fones, ou na rádio. Tempos! Agora que estamos numa época de igualitarismos, já não aceitamos que uma mulher se mostre tão altivamente desprezadora, coitado do homem, que teve que descer para a gente poder subir e já não pode oferecer palácios hipotéticos, pelo menos assim às claras.
É claro que estou a divagar, os homens continuam a oferecer palácios às mulheres, ou até vice-versa – há sempre mulheres donas de palácios e com advogados a defendê-las, muitas vezes em troca dos ditos, tipo “a bolsa ou a vida” de todos os tempos. Palácios autênticos, não de mentirinha, como na carta de amor da M. de Lurdes Resende. Mas isso passa-se em planos superiores, não na fantasia das canções de antigamente. De resto, eram cartas de puras promessas, coisa que já ninguém escreve. E por isso a bela canção da Maria de Lurdes Resende não aparece na Net, que mostrava como as mulheres eram de garra, antigamente.
Mas do que eu gostava mesmo era que a canção da Maria Lurdes Resende fosse ouvida na internet, por muito reacionária que pareça aos novos tempos.

Uma carta de amor
Por: Maria de Lurdes Resende

Recebi
Uma carta de amor
Poética e apaixonada.
Respondi
Ao meu adorador,
Que assim faz quem é educada.
«Li a sua carta, meu senhor.
Vou dar-lhe a resposta desejada.
Diz-me, com paixão, que sou formosa
Para arredondar a prosa,
Mas não diz nada.
Diz-me que quisera ter um reino,
Depô-lo a meus pés por sua lei.
Ter o meu reinado, quem me dera!
Entretanto fico à espera
Que seja rei.

Recebi
Uma carta de amor
Poética e apaixonada.
Respondi
Ao meu adorador
Que assim faz quem é educada.
Canta o galo doido, despertador,
Árias à luz da manhãzinha,
Tem o timbre dum amor perfeito,
Dá vibrantes dós de peito
Pela galinha.
As cartas de amor são papagaios.
Falam porque gostam de imitar.
Meu senhor, acabe o seu ensaio
Dê mais guita ao papagaio
Que anda no ar.

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