São dois textos expressivos do
tamanho da indignidade em que chafurdamos, como nação há muito entendida num
palco de sujeiras que pisamos. Que os dois textos seguintes confirmam,
extraídos do DN. Que a cada passo Miguel Torga realça, quer no seu Diário de
pinceladas tantas vezes apocalípticas, na dimensão dos seus cânticos de alma, feitos
de trágica consciência agónica, de uma beleza sentenciosa irresistível, quer na
sua prosa gemida de uma revolta que a sua palavra transfigura. Não resisto a transpô-los
no fim dos dois artigos que segue -, de António Barreto e de Ferreira
Fernandes - ambos igualmente sérios e revoltados, contra a indignidade de
uma política de aventureirismo e falcatrua, que o texto em prosa de Torga
confirma, como pecha nacional antiga e o texto em verso, afinal, traduz de
amor, apesar do canto apaixonado da revolta, seja em prosa seja em verso, das
suas razões antigas de opositor a um regime que desprezou.
Quem ganha, perde
António Barreto
DN,30/10/2016 – Sem Emenda
Já lhes chamaram "win-win situation"! Todos
ganham! O Estado, as empresas, os empreiteiros, os bancos, os contribuintes, os
clientes e os trabalhadores! É a solução milagre: fazer já
aquilo para que não há dinheiro. É a resposta à pressão da
necessidade para mostrar obra e pagar depois. As empresas têm encomendas. Com
garantia de Estado, os bancos emprestam. Os clientes e os contribuintes não
vêem a factura. A Europa financia e subsidia. A euforia, há mais de 20 anos,
foi total. Rapidamente, depois da primeira, a da Ponte Vasco da Gama,
Portugal passou a ser o país da Europa com maior número de parcerias
público-privadas...
No início da década de 2010, contavam-se cerca de 120
parcerias em concurso, construção ou exploração. O total de investimentos
previstos ultrapassava os 80 mil milhões! Numa versão mais restrita de 32
parcerias, em 2016, o total quase chega a 30 mil milhões. Os
pagamentos líquidos anuais rondam os dois mil milhões!
Quando se percebeu que alguma coisa estava errada,
começaram os inquéritos, cujas conclusões foram prometidas, mas nunca
chegaram. Houve renegociação, mas os resultados são vagos. Em finais
de 2015, em nove contratos renegociados, a UTAP (Unidade Técnica de
Acompanhamento de Projectos) indicava uma possível poupança de 2,9 mil
milhões. Porquê? Fez-se menos obra? Onde? Reduziram-se preços? Quanto?
Eliminaram-se lucros excessivos? De quem? Ainda hoje não se sabe.
Por que razão o governo não publica uma lista
pormenorizada das parcerias nas áreas dos transportes, dos portos e aeroportos,
da energia, da saúde, das comunicações, da segurança digital, da emergência, do
ambiente, da água e dos resíduos? Por que razão nenhum jornal, agência de
informação, canal de televisão ou estação de rádio investigou e publicou uma
lista completa, pormenorizada, de todas as parcerias?
Essas listas são fáceis de fazer, quase toda a informação está publicada em relatórios
discretos. Seria possível, por exemplo, ter a data de assinatura dos
contratos, com os nomes dos signatários por parte do
governo, das empresas interessadas, das firmas de advogados e dos bancos envolvidos
nas operações. Também seria possível ver as datas de início das
obras e da concessão, os prazos previstos, as datas de acabamento efectivo ou
de termo previsto, assim como os valores contratados e a sua evolução, isto é,
os valores e os prazos iniciais, mas também os valores e os prazos revistos.
Não seria possível ver as cláusulas secretas (os
governos sempre negaram, mas nunca um banco ou grupo económico o fez
explicitamente), nem os documentos "em falta", de que o
Tribunal de Contas se queixava quando analisou algumas dessas parcerias. Mas
seria possível saber quanto se investiu efectivamente, quais foram os
encargos previstos até 2030 ou 2040, qual o esforço financeiro que os
portugueses têm ainda de fazer até meados do século XXI, quanto era a margem de
lucro dos parceiros, quais foram as vantagens que o Estado obteve desses
contratos e quais foram os descontos que resultaram das negociações e das
arbitragens.
Todos os governos quiseram fazer parcerias. Todos
criticaram os "governos anteriores" por não terem feito tantas e tão
bem. Todos anunciaram que iriam fazer melhor, renegociar e obter condições
vantajosas. Não se cumpriram estas promessas. Já se falou de poupanças da ordem dos quatro mil milhões! Quer isto dizer que se
desistiu ou fez menos obra? Ou se baixou o preço e reduziu o lucro excessivo?
Qualquer que seja a resposta, era interessante que os portugueses soubessem,
com números e nomes... E que o governo, o Parlamento, os partidos, os jornais,
as televisões e o Tribunal de Contas cumprissem os seus deveres. Isto é, que
informassem.
A verdade é que o universo das parcerias é o meio de
cultura adequado à promiscuidade, à troca de influências e favores, aos
negócios paralelos e de proximidade... Sem informação, continuaremos a
desconfiar. E a deixar que a intriga floresça!
Solução talvez
útil: acordar
Solução talvez útil: acordar
DN, 2 DE NOVEMBRO DE 2016
Ferreira Fernandes
Trump dá-me para tirar lições caseiras. E é
assim que não entendo que, daquele episódio tão português do chefe de gabinete
apanhado em mentirinha desnecessária, se tenha esquecido um colateral
pormenor de 108 km. As falsas licenciaturas acabaram como deviam, em
demissão, mas não é de pôr uma pedra sobre o assunto porque talvez haja mais
algumas coisas a resolver. Durante o breve caso, foi referido que o tal
chefe de gabinete morava em São Martinho do Porto e todos os dias um motorista
com carro oficial o ia buscar lá, e lá devolver. Quatro viagens de carro e
motorista, 400 km diários arredondados. A Wolgang Münchau, por exemplo, que
todas as semanas aqui brilha com a sua ciência rara, eu perceberia que o
Financial Times o fosse buscar todos os dias de helicóptero. Mas a um chefe
de gabinete, mesmo a um de quem se supunha dono de duas licenciaturas, não
entendo que não se lhe dissesse: muda de casa. Ou, no limite, sendo o valor
tanto, que se engolisse a exigência de São Martinho do Porto e, nesse caso, se
retirasse o convite para chefe de gabinete de secretário de Estado e o
promovessem a ministro. Como a revelação apareceu de forma colateral,
suspeito que haja, mais quilómetro menos quilómetro, outros chefes de
gabinete e, quiçá, secretárias (e não de Estado), desencartados e lar longínquo.
O Trump acima citado? Tudo a ver.
Nada como os pequenos e
passageiros abusos generalizados para atrair os grandes e definitivos canalhas.
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De Miguel Torga, Diário IX
Gerês,
14 de Agosto de 1963 – Nestas estâncias hidrológicas é que se avalia com rigor aproximado a
fundura da nossa degradação social. Reúnem-se nelas vozes de todas as classes e
de todos os pontos cardeais do país, e há tempo e vagar de dizer e ouvir. É um
nunca acabar de ladroeiras, de torpezas, de covardias, de conivências, de
simulações. Cada qual tem na sua aldeia, na sua vila, na sua cidade um trágico
exemplo ilustrativo, de que dá testemunho. E, às tantas, o coro é tão
uníssono, tão agoirento e pungente, que parece uma encomendação funérea da alma
da pátria.
De Miguel
Torga, Diário X, 16 de Dezembro de 1963
Portugal
Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.
E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.
Mas sendo a raiz da nossa pecha de malandrice bem antiga, já sentida em poetas dos antigos Cancioneiros, cito Pero Mafaldo do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, a confirmar, no seu grito de escárnio:
Pois que vej’o que m’assi acaece
Mentirei ao amigo e ao senhor
E poiará meu prez e meu valor
Com mentira, pois com verdade dece. (CBN)
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