quinta-feira, 20 de agosto de 2009

“Vendeu que se fartou”

Começou por me trazer o Jornal Dica de 20 de Agosto para eu me informar sobre a personalidade de Mia Couto, de quem lera alguns - poucos - livros. Era sobre o lançamento do recente “Jesusalém” e à pergunta sobre como correra, ele respondeu analisando os seus conflitos íntimos, modestamente duvidoso da eficácia dos seus contactos com o público da promoção e bordando sobre isso, à maneira das lantejoulas com que borda o seu discurso literário.
De resto, expôs bem, sobre o efeito do seu curso de biólogo sobre as histórias que narra, e logo me ocorreu a analogia com António Gedeão, que também usou do seu de Física e Química para enriquecer os seus magníficos poemas. Até citei o muito conhecido “Lágrima de Preta”, revelador da íntima e fraternal comunhão de certos espíritos literatos na desmontagem dos seus sentimentos anti-racistas.
Eis o poema em quadras quinquessílabas, de Gedeão:
“ Encontrei uma preta / que estava a chorar, / pedi-lhe uma lágrima / para a analisar.
Recolhi a lágrima / com todo o cuidado / num tubo de ensaio / bem esterilizado.
Olhei-a de um lado, / do outro e de frente: / tinha um ar de gota / muito transparente.
Mandei vir os ácidos, / as bases e os sais, / as drogas usadas / em casos que tais.
Ensaiei a frio, / Experimentei ao lume, / de todas as vezes / deu-me o que é costume:
nem sinais de negro / nem vestígios de ódio. / Água (quase tudo) / e cloreto de sódio.”

Li, seguidamente, à minha amiga os meus comentários aos de um meu amigo no meu blog, defendendo Mia Couto não só como escritor mas como construtor de língua, como já nos seus tempos de Moçambique os moços utilizavam expressões dos falares locais, o “maningue”, “bué” angolano, etc., achando mais desconstrutiva a corrupção linguística dos moços de hoje, nas suas mensagens por telemóvel e orais, e a língua brasileira, na sua facilidade e corrupção gramatical, mais atentatória da dignidade da nossa língua.

1º Comentário: “Não se trata de amar os termos locais - isso há muito quem o faça, de Moçambique, Angola, Portugal de Norte a sul. Grandes escritores - e pequenos - usaram o processo, com mais ou menos arte e graça e também para mostrar o amor pelo pobre povo nosso tão espezinhadinho e ignorantezinho sempre. No caso de Mia Couto há uma construção capciosa e inteligente, muitas vezes poética, muitas vezes grotesca, grande parte das vezes para desprestigiar a língua portuguesa, não para a elevar mas tudo feito com arte & manha. E realmente é isso que me choca, tanto desamor pela pátria em que nasceu, tanto amor (fictício?) pela sua terra natal que era portuguesa quando ele usou cueiros.
Mas tanta beleza também, e criatividade. Concordo em absoluto. A mim, choca-me a traição. Porque amo a minha Pátria, pátria dos que me precederam, na sua língua, nas suas sensibilidades e realizações, e respeito mais os que, escrevendo pior, revelam igual amor e sofrimento pelo destroço em que se está a tornar. Nunca Camões seria tão amado, creio, se, embora criticasse, não tivesse mostrado tanto amor por ela. Nem Garrett, nem.
Mia Couto pode pertencer ao mundo que o louva e louvaminha, não pertence a Portugal.”


2º Comentário: “Mas, inegavelmente, o português de Portugal é uma língua bonita de se amar e não de se macaquear. Já o disse António Ferreira na sua "Carta a Pero de Andrade Caminha" que poetava em castelhano:
"Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / A Portuguesa Língua! E já onde for, / Senhora vá de si soberba e altiva. / Se até aqui esteve baixa e sem louvor / Culpa é dos que a mal exercitaram: / Esquecimento nosso, e desamor.”
Mas o mal é que o desamor continua cada vez mais vivificado entre nós. E a culpa também é do Governo.”

Li-lhe, a seguir, o comentário de Ruy Miguel ao meu texto anterior sobre Mia Couto, que achou esplêndido de oportunidade e precisão:
Uma análise crítica muito oportuna para um “gato (mia) escondido com o rabo de fora. Para miados destes há no Portugal de agora as maiores honrarias. Realidades.”

E ei-la agora, a minha amiga dos tempos de África, a todo o vapor, sem me dar tempo a responder, numa fluência sem travão, aos borbotões, via-se quanto sofreu, via-se bem o que sofre. Porque o que lá deixou, nunca foi recuperado. A África não paga a ninguém. E sente pelos que lá vivem, no seu infortúnio sem horizonte.
Hoje, Mia Couto vive bem. Deve viver bem. É um escritor famoso. Mas os pretos não passavam fome. E hoje passam. E andam nas ruas esfomeados.”
Ela já lá voltou, fala com conhecimento.
E os ricos vivem nas suas vivendas cercadas de arame farpado electrificado e alguns com piscinas e courts de ténis.
“Antigamente viviam bem mas não ostensivamente, a não ser os casos pontuais dos useiros e vezeiros.
“Não sei nada do Mia Couto, se tem piscina. Mas os pretos vivem malérrimo.
“Há uma parte preta que vive bem, também com as suas vivendas com piscina. Os do governo e os interligados.
“Agora diferenças há muitas, porque o seu povo tem fome. Nós não tínhamos os pretos na rua com fome. Nunca vi.
“São uns desgraçados. Espero que ele também escreva um livro sobre isso.
“Lançou o seu novo livro com o maior sucesso. Vendeu que se fartou. Ninguém está contra. Já deve ter metido na cabeça que o que escreveu foi injusto. Porque as coisas pioraram muito. Aí é que está.
“Os Portugueses não prestavam. E ele descobriu um filão. Com certeza. Deve-se à sua inteligência e engenho. As suas histórias são poéticas, bem feitas. Contra os opressores colonialistas. Ele descobriu um filão.”

Finalmente, a minha amiga calou o seu desabafo, tomando, já frio, o seu café. Eu tomava as minhas notas, bebi o meu, frio também. Mas concluí, não sei se perversamente:
“Sim, são histórias poéticas, outras menos, num mundo de magia que tem o seu encanto. A mim cansa-me, não só o repetitivo mórbido - "à la longue" - das expressões embrulhadas, de efeitos complexos, como também a magia, que me faz lembrar o Harry Potter e o mundo irreal que encantou e encanta ainda a mocidade e algum do mundo adulto. Nunca consegui ler, acho intragável esse mito moderno, sem solidez nem seriedade, causa de desequilíbrio emotivo e de irresponsabilidade. Mas dá milhões e isso é que é sólido hoje. Devemos curvar-nos, por isso, ante esse poder dos fantásticos milhões.
Como, de resto, se costuma fazer.”

2 comentários:

Ricardo disse...

Como amigo que não posso deixar de ser, devo dizer o seguinte - se alguém descobriu um filão, nada impede a outros que o sigam. É pena que grandes pensadores se ocupem em analisar os filões pela rama. Especialmente se possuem em si potencialidades para fazer muito mais e muito melhor. Se o desafio de hoje em dia é escrever romances e se, por cá, há tantos que os encomendam e obtêm êxitos estonteantes, porque não agarrarmos nós próprios no material pensante que possuímos colocando-o ao serviço da comunidade em vez de andarmos tricotar mantas de retalhos com pequenos artigos, lamentando os milhões que os espertalhões ganham? Afinal também o Tolkien e muitos outros, com as suas histórias do incrível, estenderam uma passadeira vermelha à Rowling.
Às vezes parece ser melhor tomarmos partido do velho do Restelo do Camões e ficar a treinar a equipa na poltrona, à frente do televisor.

Por AmaisB disse...

O "parti pris" obscurece sempre a razão. Em vez de argumentos, usamos genéricos, e se pontuados com ironia, melhor nos sentimos. Nenhum dos textos sobre Mia Couto condenou o "filão". Houve dados de apreço, outros de depreciação. Mas todos justificados. O resto é treta.