sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Como se eu tivesse culpa

Li um artigo de Jorge Miranda, professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa sobre “Mestrados em Inglês?”, no “Diário de Notícias” em 3 de Agosto. Protesta contra a proposta da União Europeia de tornar a língua inglesa como língua oficial dos mestrados de Bolonha, além de outras considerações que faz sobre os mestrados em si.
Também vi na Internet comentários pró e contra. Um dizia que porque não em “Xinês”?, e via-se que estava zangado, mas não há razão para zangas, quando se escreve assim em português, isto é, tanto lhe deve fazer, "ça lui est égal" como ao Meursault.
E a minha amiga :
- Ai, a língua vai ao ar! Troca-se tudo e não se leva a mal. E vai ser mais e mais e mais, e nós não temos a mínima força. Lá aparece um ou outro a defender...
Ainda por cima, ela diz as coisas sempre numa entoação extremamente vigorosa, que me deixa caída e com peso na consciência. Como se eu tivesse culpa. E como, por vezes, no momento, estou a levar a bica à boca, lá me cai um pingo com o sobressalto. Tento justificar:
- Que o Inglês é uma língua poderosa, isso é mais que sabido, basta-lhe a língua e o porte e o mundo que os Ingleses construíram, pelo mundo fora, para lhes dar direito à universalidade linguística.
Como me estava a correr bem o discurso, continuei com digno saber:
- Ainda bem que os Chineses não se lembraram – ainda! – de impor a sua, que parece que é a língua mais difundida. Mas eles são pacatos, até ver, diz-se, sem o que, lá teríamos nós que aprender a desenhar, da direita para a esquerda, os seus logogramas, no caso da escrita.
- E no caso da fala , nem se fala, se tivéssemos que o aprender. Então é que era o caos.
- Pois, mas antigamente foi o Latim, foi um ver se te avias de estudiosos do Latim e de línguas que se forjaram a partir do Latium onde aportou o troiano Eneias, depois de despedaçar o coração da rendida e depressiva Dido.
- Nunca ouvi falar.
- Hei-de trazer-lhe a “Cantata de Dido” de Correia Garção. Foi a fundadora de Cartago, que se apaixonou por Eneias, e se suicidou quando ele se fez à vela direito ao Lácio. Vem na “Eneida”. Acaba assim, a cantata, muito bonita: “...Dido infelice / Assaz viveu; / D’alta Cartago / O muro ergueu. / Agora, nua, / Já de Caronte, / A sombra sua / Na barca feia / De Flegetonte / A negra veia / Sulcando vai.” Eu costumava dar isto em literatura portuguesa dantes, e tentava que os alunos descobrissem o fio condutor do discurso labiríntico por ser alatinado: (“Agora, a sua sombra nua já vai sulcando a negra veia de Flegetonte na barca feia de Caronte”). É muito giro.
- Realmente! Temos tanta coisa bela que queremos enterrar!
Continuo, embalada, a minha lição, mas a minha amiga acha-se com direito à retribuição das suas e não se importa:
- O latim foi permanecendo entre o clero e os eruditos, que não se davam mal nem protestavam, pois falavam entre eles e compunham obras de grande calibre, que enchem as bibliotecas dos conventos para os estudiosos modernos, se não para as moscas e a traça. Mas o latim esmoreceu e até mesmo a Igreja o sacrificou nos actos litúrgicos da missa.
- Sim, bem me lembro! Deve ter sido pelos anos sessenta. Falou-se muito nisso, na altura. A missa agora tem menos solenidade, acho eu.
- Eu também! Perdeu o secretismo do sagrado. Mas o efeito é o mesmo.
A minha amiga não se conforma:
- Agora é o Inglês! Mas ainda não para a missa.
- Não. Fala-se nos mestrados segundo Bolonha, em Inglês, e até já há adeptos da uniformidade no Parlamento Europeu.
- E nem avisam, nem consultam os outros povos da União, ao que consta!
- Ah! Mas nós, não tarda, estamos lá caídos! Já cá temos o Acordo! Porque não o Inglês nas nossas Universidades? Mesmo no ensino do Português e seus escritores, porque não os havemos de fazer em Inglês? Para estrangeiros também, que somos muito tímidos.
- Pois é! A nossa língua vai mesmo ao ar!
- O que eu não entendo é o pedantismo disto tudo. Se nem o português aprendemos convenientemente, como temos a pretensão de aprender um inglês capaz?
- Também pouco importa. Isto está por pouco, que o que nós não aprendemos é nada.

Um comentário:

Unknown disse...

Nova estratégia de ensino que vou experimentar para o ano: o óbulo na boquinha de cada um dos meus alunos que não progrida de maneira decente. Pode ser que a cenoura funcione... "Tá" mais de acordo com a sociedade neo-liberal e com o choque tecnológico e com Bolonha e com a licenciatura dos nossos governantes queridos. (O com é à Eça, foi de propósito)