sexta-feira, 9 de abril de 2010

Comentário dilatado

O texto “Novos tempos” de Gabriel Cipriano, que tem como subtítulo “calúnias em tempo de paz não levam à guerra, toleram-se”, explora o tema do saudosismo pela época salazarista de alguns críticos da nova república democrática, considerando ele a impertinência desse posicionamento de cegueira propositada relativamente a um passado marcado, segundo esses cegos, por uma maior rigidez social e respeito de valores que o Estado democrático fez eliminar.
Gabriel Cipriano considera que nunca se evoluiu tanto como agora, fechado a quaisquer razões de bom-senso, apostado na apologia dos novos tempos, ofuscado pelo esplendor das liberdades e ousadias actuais, sem pesos na consciência nem respeito, sequer, pela catadupa de desempregados de agora, nem atenção relativamente a um ensino deficitário a uma juventude criada na irresponsabilidade, na indiferença ou na indisciplina, deixando prever consequências irreparáveis sobre o país futuro.
Gabriel Cipriano ataca os que assim caluniam o presente, prontificando-se a uma tolerância irónica, porque os sabe inofensivos, num estado socialista que se impôs nos seus jeitos tentaculares paralisantes, mau grado os murmúrios ou os apelos denunciadores dos seus desmandos.
No comentário que fiz ao seu texto, apontei a inverdade sobre os, segundo ele, acomodados do antigo regime, que, se reconhecem valores nele, não deixaram de o atacar nos defeitos que nele reconheceram.
Isso me levou a exemplificar com um dos textos que escrevi pelos anos setenta, contido no livro “Prosas Alegres e Não”, de 1973, demonstrativo dessa inverdade arbitrariamente e capciosamente lançada no texto de Gabriel Cipriano:

“O Velho Reformado”
«Reformara-se havia uns tempos, e como não lhe chegasse o ordenado para fazer face às despesas certas da renda de casa e do merceeiro, resolvera procurar um emprego que equilibrasse o seu barco, o qual jamais fora impante veleiro, mas modesto baixel, singrando devagar numa vida apertada e difícil. Muitos filhos, uma profissão modesta, descontos largos para aquela reforma que, quando chegou, se revelou mais que insuficiente.
Agora tinha os filhos já feitos, é certo, alguns casados, todos felizmente com emprego, todos, felizmente seus amigos, desejosos de auxiliar os pais, a quem deviam a sua formação.
Mas o velho reformado, couraçado atrás de um orgulho justificável, recusara-se a aceitar o tributo merecido. Sentia-se válido ainda, não precisava de mendigar a esmola de ninguém. E procurou emprego.
Dias após dias se dirigiu às firmas anunciadas nos jornais, que pediam empregados. Mas sempre o recusavam, atendendo à idade avançada do homem que se sentia, afinal, cheio de vida ainda.
A mesma dignidade que o impelira sempre a seguir por si, fazia-o não suplicar agora a ajuda de ninguém. Os filhos, como desejavam proporcionar aos pais o justo descanso, não se afadigavam a facilitar-lhe o almejado emprego.
E o velho reformado ia cismando na vida, e procurando trabalho em vão.
De repente, soaram zunzuns sobre o aumento dos vencimentos. Céptico, calculou logo as consequências sobre a carestia da vida. Entretanto, pensava contrabalançar o facto, com o referido aumento.
Não se enganou quanto à carestia. Não calculou, porém, que também o Estado deixara de o reconhecer como pessoa válida e com naturais necessidades. A vida podia subir de nível e de preço para os outros. Para o velho reformado, nível e preço não contavam, convinha até que entrasse em regime dietético, por imposições de saúde. Teria, pois, de se contentar com a magra pensão que lhe fora estipulada, e para receber a qual, passara uma vida trabalhando e descontando.
Não, o aumento não fora para ele. Estava velho, trapo usado que se põe para o canto ou se larga ao vento. Não merecia aumentos, visto que deixara de colaborar na máquina do Estado. Este nunca fora muito pródigo, mas agora revelara-se desumano, filho ingrato abandonando o velho pai inútil no cimo do monte.
Conseguiu, finalmente, um emprego. Coisa pobrezinha, não podia aspirar a muito, estava velho. Mas, enfim, o Estado podia ficar descansado, no caso de surgirem escrúpulos: ele não morreria à fome com a sua reforma. Tinha um emprego para auxiliar. Também a sua companheira de tantos anos o ajudava o mais que podia. Eram só dois, não precisavam de criados, ela até se entretinha nas lides da casa.
E a velhice de ambos ia decorrendo tranquila, embora economicamente difícil, como fora sempre a sua vida, que já não valia a pena alterar.
Mas cismava, o velho reformado, nessas espantosas incongruências que vão por esse mundo de Cristo, e que o sentido de equidade, existente, afinal, nos humanos e por Cristo também pregado, se não apressa a rectificar.»

Outros mais textos poderia citar sobre problemas sociais daqueles tempos, ao sr. Gabriel Cipriano, para lhe provar a sem-razão da sua desconfiança sobre a cegueira apenas e só admirativa dos defensores da segunda república. Mas não adianta, que a sua cartilha é outra, e os princípios que defende certamente que lhe convêm. Não deve esquecer, todavia, a liberdade de opções que essa cartilha proporciona a todos.


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