sexta-feira, 9 de abril de 2010

Uma de insectos

«Era uma vez uma pulga que não deixava o homem em paz nem em descanso. Este apanhou-a e disse-lhe: “Quem és tu que te repimpaste sobre todos os meus membros, mordendo-me a torto e a direito?” “É assim que vivemos”, respondeu a pulga; “poupa-me, porque não posso fazer grande mal” O homem desatou a rir: “Tu vais morrer já”, disse-lhe ele, “e pelas minhas próprias mãos: seja grande ou pequeno, é preciso extirpar o mal sob todas as suas formas.”
A fábula mostra que não se deve ter piedade de quem faz muito ou pouco o mal.»

Com isto, discutimos a pena de morte. A mim repugna-me. Tenho uma sensibilidade muito depurada, já de criança. Se uma mosca e até mesmo vespa caíam na água do tanque onde se lavava a roupa, e remexiam patas e asinhas aflitivamente, eu acudia-lhes, fada benfazeja, sentindo os seus estertores como meus. As pulgas não, é certo, nunca poderia perdoar-lhes, quando logo ao entrar nos eléctricos em Coimbra, instantaneamente lhes sentia as picadas. Vivi horrores, e era sempre nos eléctricos que as apanhava. Nunca em África as contactara, foi grande a surpresa cá. Em África, era mais a filária que me atravessava os pés, em comichões danadas, por causa de brincar descalça, no terreno atrás da nossa casa. Essa, nem com o éter que ia pôr no Hospital Miguel Bombarda, desaparecia dos meus pés, em carreiros indecorosos. Um sangue doce o meu. Azedou com a idade. Mas continuo a safar os caracóis quando estes aparecem nalguma folha de alface ou de couve vindas do quintal. Imediatamente o despacho, são e salvo para as hortaliças exteriores, junto do compadrio. Mas nunca perdoei às baratas, pisando-as com gritos de terror, o que significa que a doçura piedosa em mim é um pouco arbitrária.
Às vezes digo que os incendiários deviam morrer nos incêndios, mas peço perdão a Deus dos péssimos pensamentos que albergo. A minha amiga é mais drástica, não pede perdão dos seus. Acha que gente há merecedora da pena de morte e até defende a eutanásia, no caso do prolongamento das vidas que já não são vidas, engelhadamente sustentadas por máquinas e alimentos, sem nada sentir a não ser uma leve reacção de incómodo quando a comida lhes entra pelo tubo do nariz. Mas quem era capaz de mandar retirar os tubos e tornar-nos responsáveis pela morte do ser que se ama e se vai conservando junto de nós? Pouca gente o faria, embora considere a crueldade de manter viva uma pessoa que, não fossem os tubos, já teria morrido menos dolorosamente, talvez, e mais dignamente, decerto.
É complicado assumirmos a responsabilidade da morte de alguém e no caso da pena de morte creio que nenhuma de nós o afirmamos seriamente.
A História está pejada de horrores assim, quer por fusilamentos, decapitações, cadeiras elécricas, envenenamentos, câmaras de gás, e imagens há em quadros ou fotos inesquecíveis desses horrores cometidos pelos homens de todos os tempos.
Não, o Esopo é muito antigo, o mal nunca se chega a extirpar, não digo que se deva ter piedade por quem o pratica, embora Cristo tenha dito que sim, mas é porque Cristo era Cristo e viveu numa época em que não havia ainda Hitlers, nem outros poderosos da mesma igualha, ainda que já houvesse Neros e Tibérios apontando as vias da monstruosidade moderna.
Quando a minha amiga diz concordar com o Esopo sobre o ser-se impiedoso em certos casos, sei bem que ela não seria capaz de castigar assim ninguém. Todavia, é numa época de monstruosidades que vivemos, com guerra, que Vieira definiu tão magistralmente, ou com paz, conquanto fictícia. Que os que limpam as armas na paz, vão limpando da mesma forma o sabugo às gentes.

Nenhum comentário: