O meu filho João embarcou hoje para Luanda. Ontem pôs-se o problema das saudades, aliás tema que já vem sendo tratado ao longo dos dias da sua estada cá. O pai diz que a mamã e a Beatriz vão ter muitas saudades dele, mas logo a Beatriz, quatro anos suavemente desenvoltos, contesta: “- Não é a mamã e a Beatriz, é a Beatriz e a Mamã.”
- Então porquê, filha?
- Porque eu não quero ser a última!
Nada a fazer com o egotismo das crianças. E tem razão a Beatriz, ao reivindicar o seu posicionamento no agregado familiar. Os filhos são o centro do mundo dos pais. Sempre se ouviram histórias dos sacrifícios das mães ou dos pais pelos filhos, prova dessa verdade.
Não é sempre assim, a gente sabe que não. Mas é-o na generalidade. Por isso, todas essas histórias de raptos, pedofilias, violências de estarrecer sobre as crianças indefesas, de órfãos desamparados, de crianças com fome, e ultimamente as histórias ouvidas de talibans fundando escolas de uma pedagogia de auto-imolação de crianças visando a imolação gratuita de gente, nos deixam, não boquiabertas, que nas nossas idades – minha e da minha amiga - não é definitivamente estético, mas infinitamente tristes, na constatação de um mundo de pesadelo, também na questão das crianças, em que se sufoca tantas vezes, na sua difusão pelos “media”.
Por isso, na lembrança do filho que partiu e que deve estar quase a pisar solo africano, na tristeza também deste fim de tarde que se pôs chuvoso e fusco, a condizer com a tal saudade de que se falou ontem em casa da Beatriz, e a condizer com o sentimento de indignação que nos sufoca quando falamos das tais criancinhas sujeitas aos malefícios do seu destino, transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, que dedico ao pai da Beatriz – por conta das saudades que vai sentir pela sua filhinha reivindicativa do seu espaço à cabeça dos seus papás, e que, entretanto, já pisou o solo de Luanda :
“Aqueles corpinhos tenros”
«Criara o primeiro filho segundo os preceitos rígidos que sempre ouvira ao pai e que os médicos aconselhavam. Mamadas certas, um descanso permanente, no quartinho envolvido em repousante penumbra e silêncio. E de facto não lhe dera problemas o seu primeiro filho. Tirante uma ou outra otite ou constipaçãozinha naturais, a criança vingava bem, gordinha do leite da mãe e mais tarde das papinhas feitas a preceito. Nem sequer era chorão, o seu bebé. Ela também precisava desse sossego, não só porque trabalhava, mas porque o choro dos bebés é sempre enervante. E nessa altura ela, ainda jovem, pensava que um dia perdido, ou uma hora sequer, a embalar o seu menino nos braços, era habituá-lo mal, porque as crianças adquirem logo manhas que convém evitar desde o início. Não tivera manhas o seu primeiro filho. Era uma criança saudável, que comia bem e dormia bem.
E no entanto, muitas vezes pensava que são mais felizes aquelas mães que criam os seus filhos sem olhar a regras e invejava até as mamanas que passavam nas ruas, levando os filhos bem junto delas, ora atrás, dormindo, ora à frente, mamando. O seu filho tinha regras a seguir, para lhe dar boas noites a ela, visto que trabalhava. E passava o tempo dormindo no seu bercinho.
Quando teve o segundo filho – uma menina – passou uns tempos com os pais. Bem gostaria de aplicar a esta as mesmas noções que haviam dado tão bom resultado com o primeiro. Mas lá estava a mãe para lho impedir. Se a bebé chorava, logo a avó ia buscá-la e embalá-la nos seus braços. A avozinha cozinhava, a bebé assistia, encaixada no colo terno. Nada valiam reparos, noções, conselhos doutorais. A avozinha já sabia dar o verdadeiro valor às coisas, e para ela valia mais uma hora perdida, gozando o frescor do corpinho tenro da neta, do que as outras coisas inadiáveis que afinal o não eram tanto. Bem sabia a doce avó que esses corpinhos tenros depressa deixam de o ser e que a vida os leva para longe de nós mais cedo do que julgamos.
Teve outros filhos – os últimos mais novos do que os primeiros.
Também ela sabe agora dar mais valor àquele ser pequenino que tanto depende de si. Já não se impacienta tanto se o seu bebé lhe chora. E embala-o nos braços, sem medo de que ele crie manhas. Porque as crianças pequenas muito cedo as adquirem. Mas ela sabe agora quão fugazes são os instantes em que poderá embalar o seu filho, tê-lo todo para ela, e não se importa com as manhas.
Por isso faz coisas que nunca julgou vir a fazer algum dia. Quando o bebé chora de noite, mesmo depois de beber o leite, já não pensa como dantes que não convém dar-lhe maus hábitos. Leva-o para a sua cama, sem receio da atmosfera menos pura para o seu filhinho.
E uma nova felicidade a invade, ao sentir o corpinho tenro, quentinho junto a si, dormindo o sono descansado que só a não deixa a ela descansar bem, com receio de o perturbar. Mas não se importa de não descansar tanto. Há sempre tempo para o fazer – mais tarde.
É que, sobrepondo-se a essa contrariedade que a faz no dia seguinte andar um pouco ensonada no seu trabalho, está a presença pequenina que ela desejaria reter junto a si, sabendo bem como são irremediavelmente breves esses momentos de dependência plena e absoluta, desse corpo pequenino que depressa crescerá, liberto da sua tutela, e que bem cedo lhe imporá a sua própria personalidade.»
Os lugares cimeiros... A Beatriz tem razão hoje, na sua reivindicação de prioridade. Será que vai pensar assim quando for grande? “Che sarà, sarà? Nessuno saper potrà”... Oxalá que sim, e que o saiba merecer. Embora os lugares intermédios sejam, talvez, menos fastidiosos.
- Então porquê, filha?
- Porque eu não quero ser a última!
Nada a fazer com o egotismo das crianças. E tem razão a Beatriz, ao reivindicar o seu posicionamento no agregado familiar. Os filhos são o centro do mundo dos pais. Sempre se ouviram histórias dos sacrifícios das mães ou dos pais pelos filhos, prova dessa verdade.
Não é sempre assim, a gente sabe que não. Mas é-o na generalidade. Por isso, todas essas histórias de raptos, pedofilias, violências de estarrecer sobre as crianças indefesas, de órfãos desamparados, de crianças com fome, e ultimamente as histórias ouvidas de talibans fundando escolas de uma pedagogia de auto-imolação de crianças visando a imolação gratuita de gente, nos deixam, não boquiabertas, que nas nossas idades – minha e da minha amiga - não é definitivamente estético, mas infinitamente tristes, na constatação de um mundo de pesadelo, também na questão das crianças, em que se sufoca tantas vezes, na sua difusão pelos “media”.
Por isso, na lembrança do filho que partiu e que deve estar quase a pisar solo africano, na tristeza também deste fim de tarde que se pôs chuvoso e fusco, a condizer com a tal saudade de que se falou ontem em casa da Beatriz, e a condizer com o sentimento de indignação que nos sufoca quando falamos das tais criancinhas sujeitas aos malefícios do seu destino, transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, que dedico ao pai da Beatriz – por conta das saudades que vai sentir pela sua filhinha reivindicativa do seu espaço à cabeça dos seus papás, e que, entretanto, já pisou o solo de Luanda :
“Aqueles corpinhos tenros”
«Criara o primeiro filho segundo os preceitos rígidos que sempre ouvira ao pai e que os médicos aconselhavam. Mamadas certas, um descanso permanente, no quartinho envolvido em repousante penumbra e silêncio. E de facto não lhe dera problemas o seu primeiro filho. Tirante uma ou outra otite ou constipaçãozinha naturais, a criança vingava bem, gordinha do leite da mãe e mais tarde das papinhas feitas a preceito. Nem sequer era chorão, o seu bebé. Ela também precisava desse sossego, não só porque trabalhava, mas porque o choro dos bebés é sempre enervante. E nessa altura ela, ainda jovem, pensava que um dia perdido, ou uma hora sequer, a embalar o seu menino nos braços, era habituá-lo mal, porque as crianças adquirem logo manhas que convém evitar desde o início. Não tivera manhas o seu primeiro filho. Era uma criança saudável, que comia bem e dormia bem.
E no entanto, muitas vezes pensava que são mais felizes aquelas mães que criam os seus filhos sem olhar a regras e invejava até as mamanas que passavam nas ruas, levando os filhos bem junto delas, ora atrás, dormindo, ora à frente, mamando. O seu filho tinha regras a seguir, para lhe dar boas noites a ela, visto que trabalhava. E passava o tempo dormindo no seu bercinho.
Quando teve o segundo filho – uma menina – passou uns tempos com os pais. Bem gostaria de aplicar a esta as mesmas noções que haviam dado tão bom resultado com o primeiro. Mas lá estava a mãe para lho impedir. Se a bebé chorava, logo a avó ia buscá-la e embalá-la nos seus braços. A avozinha cozinhava, a bebé assistia, encaixada no colo terno. Nada valiam reparos, noções, conselhos doutorais. A avozinha já sabia dar o verdadeiro valor às coisas, e para ela valia mais uma hora perdida, gozando o frescor do corpinho tenro da neta, do que as outras coisas inadiáveis que afinal o não eram tanto. Bem sabia a doce avó que esses corpinhos tenros depressa deixam de o ser e que a vida os leva para longe de nós mais cedo do que julgamos.
Teve outros filhos – os últimos mais novos do que os primeiros.
Também ela sabe agora dar mais valor àquele ser pequenino que tanto depende de si. Já não se impacienta tanto se o seu bebé lhe chora. E embala-o nos braços, sem medo de que ele crie manhas. Porque as crianças pequenas muito cedo as adquirem. Mas ela sabe agora quão fugazes são os instantes em que poderá embalar o seu filho, tê-lo todo para ela, e não se importa com as manhas.
Por isso faz coisas que nunca julgou vir a fazer algum dia. Quando o bebé chora de noite, mesmo depois de beber o leite, já não pensa como dantes que não convém dar-lhe maus hábitos. Leva-o para a sua cama, sem receio da atmosfera menos pura para o seu filhinho.
E uma nova felicidade a invade, ao sentir o corpinho tenro, quentinho junto a si, dormindo o sono descansado que só a não deixa a ela descansar bem, com receio de o perturbar. Mas não se importa de não descansar tanto. Há sempre tempo para o fazer – mais tarde.
É que, sobrepondo-se a essa contrariedade que a faz no dia seguinte andar um pouco ensonada no seu trabalho, está a presença pequenina que ela desejaria reter junto a si, sabendo bem como são irremediavelmente breves esses momentos de dependência plena e absoluta, desse corpo pequenino que depressa crescerá, liberto da sua tutela, e que bem cedo lhe imporá a sua própria personalidade.»
Os lugares cimeiros... A Beatriz tem razão hoje, na sua reivindicação de prioridade. Será que vai pensar assim quando for grande? “Che sarà, sarà? Nessuno saper potrà”... Oxalá que sim, e que o saiba merecer. Embora os lugares intermédios sejam, talvez, menos fastidiosos.
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