segunda-feira, 19 de abril de 2010

O homem insaciável

É muito conhecida a fábula do cão – cadela em Esopo, não sei se por resquícios machistas já em uso - que, enganado pelo seu reflexo na água, tomou a coisa como realidade e vá de se atirar a ele para apanhar o bom bocado que ele próprio levava e não reconheceu.
Das três fábulas que seguem, é a de Esopo a mais terra-a-terra, com a justificação dos actos e uma moral sintética sobre a ambição humana, a de João de Deus a mais ficcionada, o pedaço de carne de Esopo transformado em ágil coelho escapado à morte por conta da ilusão humana, a de La Fontaine a mais crítica e a mais filosófica, pondo em jogo o erro e a loucura humanos de definir a realidade pelas aparências, à maneira platónica:
De Esopo (Fables)A cadela e o seu pedaço de carne
«Uma cadela levando na boca um pedaço de carne queria atravessar um rio, quando avistou o seu reflexo na água e supôs que era outra cadela que transportava um pedaço de carne ainda maior. Por isso, lançou-se à água, não sem antes ter largado o seu naco para apanhar o da outra. Como consequência, perdeu ambos: um, porque não pôde atingi-lo, já que não existia, e o outro, porque foi levado pelo rio. Esta fábula visa o homem insaciável.»
De La Fontaine, “O Cão que deixa a presa pela sombra
«Todos se enganam cá na Terra: / A gente vê correr atrás da sombra / Tantos loucos, que a maior parte das vezes lhes perde a conta. / Ao Cão de que fala Esopo / Temos a obrigação de os enviar. / Este Cão, vendo a sua presa na água representada, / Deixou-a pela imagem e pensou que se ia afogar, / A ribeira de repente agitada; / A muito custo chegou à margem, / E perdeu a sombra e o corpo, de uma só penada.»
De João de Deus,O Cão e a presa” (in “Campo de Flores!)
«Um cão apanha um coelho / À margem de uma ribeira, / Mas vendo-o naquele espelho, / Larga-o, salta a ribanceira... / E assim perde o que levava, / E mais o que ambicionava! ! Abençoada prudência / (E é esta a moralidade!) / Quantos pela aparência / Perdem a realidade!»
Hoje em dia, tal fábula não se vê que se aplique ao homem moderno, o insaciável de que fala Esopo, que perde o certo pelo duvidoso. O homem hoje, no rasto do duvidoso – ou do ilícito, como se lhe chama também – vai aforrando o certo, cada vez mais cheio de “certezas”, e sem Platão à vista.

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