Faz a Srª D Orkidea Lima um comentário ao meu texto “Pergaminhos”, confirmando, mais duramente ainda, a falta de humanidade dos auxiliares de medicina e a incompetência mais ou menos generalizada dos médicos, que vêm de tempos imemoriais, e apela a que se denuncie tudo isso, já que os impostos que pagamos deviam merecer uma assistência pública mais eficaz, sob todos os pontos de vista. Mas não merecem, nunca mereceram, não merecerão. Não temos educação cívica, na grosseria e bruteza a que fomos habituados desde os primórdios.
Lembro-me, era eu criança, de que as pessoas de Lourenço Marques – e não só, de todo o Moçambique - com poder económico, não se sujeitavam aos médicos ou tratamentos da terra. Deslocavam-se à África do Sul, onde eram eficientemente, educadamente e humanamente atendidas.
E não só para os dentes, organismos que desde sempre Portugal desconheceu como pertencentes ao corpo humano, com direito a tratamento gratuito. Estou a falsear a verdade. Um dia, devia eu ter os meus onze ou doze anos, fui ao Hospital Miguel Bombarda para tratar um dente doente. Mas os dentes doentes não eram tratados, eram arrancados e assim sucedeu comigo. O dente foi arrancado, creio que sem anestesia eficiente, foi arrancado a sangue-frio, pois só me lembro dos meus berros suplicantes e inúteis - o dente extirpado pelo arrancador de dentes que se aproveitou do facto de uma criança ter ido só, para exercer triunfalmente o seu sadismo - e do meu percurso a pé até casa, uns três quilómetros distante, pelas avenidas floridas, indiferentes ao meu choro ininterrupto, pela vergonha, assim soluçante, de apanhar o machimbombo.
Outras experiências de contacto médico foram perpassando na minha vida, e tive ocasião de descrever algumas, entre outras, em texto que transponho de “Pedras de Sal”, em segunda edição contido em “Cravos Roxos”, aquele, dos anos setenta, este, dos anos oitenta, mas que evoca um episódio da minha infância passado com meu Pai, que me ficou gravado no horror da indignação sempre presente.
Com esse, creio demonstrar à srª D. Orkidea Lima, que, tal como ela, eu não me furtei, já de longa data, a denunciar o erro de uma sociedade desconcertante. Mas, ou por falta de saliência dos meus livros, como de outros, ou porque o ditado nos diz que quanto mais se mexe na porcaria nauseabunda mais ela se expande, cada vez mais nauseabunda, levando-nos à contestação do slogan “Tudo vale a pena” pessoano, ou porque já não mudamos na aquisição de preceitos éticos, ou por isto ou por aquilo, ou nem sequer por nada, amorfos que somos, continuamos. Amorfos. Eis o texto:
« “Comei-vos uns aos outros”
Bons cursos são ainda os dos médicos para se obterem coroas. Não, talvez, às bateladas, como alguns advogados ou engenheiros com clientes e empresas de vulto próprias para um rápido alcance da áurea fortuna, mas é um dinheiro que vai pingando, como o sebo derretido a amontoar-se no fundo do pires: 300$00, 400$00, 500$00, 600$00, 750$00, etc, assim os médicos famosos, ao verem os doentes sem fama e com dores em dez minutos ou quinze – às vezes mesmo cinco bastam para analisar a natureza delas – das dores – fazem pagar cada letra da receita, incluindo as da assinatura, felizmente reduzida, senão maior seria a despesa do doente sem fama, a peso de ouro.
Ao fim do dia, não lhes deve ser difícil, aos médicos famosos, conseguirem acumular o que os seus doentes ganham em um mês ou dois e é consolador sabermos que, graças à profusão de doentes, a cidade aumenta de médicos abastados, capazes das grandes obras sociais, como sejam, a construção de prédios para embelezamento das artérias citadinas.
Há sempre refractários às consultas, daqueles que aguentam dores, para não terem de chorar a falta do pão e do arroz, também muito aumentados. Mas acabam por transigir com a ciência esculapina, pois o sofrimento faz esquecer o arroz.
Por vezes os médicos mandam voltar para revisão e a gente agradece reconhecidamente o interesse demonstrado pelo senhor doutor pelo nosso caso mórbido, mas as revisões também são pagas, com pequeno abatimento, mesmo que aquele só tenha comprovado que vamos indo melhorzinhos, graças a Deus, a ele, e aos antibióticos, de eficiência e careza perfeitamente demonstradas.
A gente julga que os médicos, além de terem aprendido a tratar os males – embora haja alguns muito desastrados que até nem isso, apesar dos antibióticos – estudaram uma qualquer disciplina de ética profissional, que equipara o seu ofício a uma espécie de sacerdócio do tipo João Semana, onde a dedicação pelos homens e suas dores os induzirá a não extorquirem o coiro e o cabelo aos pobres miseráveis doentes que não se podem furtar a serem extorquidos, uma disciplina que os levará a travarem, uma ou outra vez, os seus passeios dos fins-de-semana, quando os desastres ou as dores mais se lembram de atacar, e os médicos citadinos, de bolsas bem cheias com as receitas da semana, fizeram debandada geral para gozo de aprazíveis férias.
Outras vezes são outros compromissos que os impedem de estar presentes. Nunca me esqueço de que, quando pequena, o meu pai, martelando no quintal num domingo de manhã, feriu-se gravemente num olho com um prego. Foi em veloz táxi para casa do doutor dos olhos, mas era a hora da missa e aquele mandou-o esperar enquanto ele cumpria as suas devoções, que depois da missa inspeccionaria o olho ensanguentado com a alma mais limpa doe pecados e a visão mais clara do mal.
Esta febre medical de atingir num ápice o cume do bem-estar e da importância gerados pela riqueza não tem controlo, tal como sucede actualmente em todos os outros sectores da vida económica e da administração.
As taxas telefónicas, por exemplo, abrangeram neste mês da graça, já dois meses de ajudas de custo, além dos 200 ou 300% a mais que se pagam do restante, provocado pelo excesso de chamadas resultante do cruzamento de linhas que obrigam a discar duas erradas para se obter a chamada certa, ou a desligar a certa para não se escutarem duas erradas que poderão estar a roer-nos na pele em cruzamento inocente. Também o papel higiénico aumentou de preço e diminuiu de volume e de possibilidade de aquisição e até as próprias conservas deixaram de conservar o preço anterior, num duplo-salto espalhafatoso.
E o povo protesta mas paga, e o coro geral é de horror e de estupedificação perante a avalanche com que uns homens, como vampiros, saltam em cima dos outros, sugando-os e esfolando-os com animação.
“Comei-vos uns aos outros”... Mas o mal é que nisto de comer são mais os uns do que os outros, e sem reciprocidade.»
E tudo isso alastrou, na amorfia da democracia reinante.
Lembro-me, era eu criança, de que as pessoas de Lourenço Marques – e não só, de todo o Moçambique - com poder económico, não se sujeitavam aos médicos ou tratamentos da terra. Deslocavam-se à África do Sul, onde eram eficientemente, educadamente e humanamente atendidas.
E não só para os dentes, organismos que desde sempre Portugal desconheceu como pertencentes ao corpo humano, com direito a tratamento gratuito. Estou a falsear a verdade. Um dia, devia eu ter os meus onze ou doze anos, fui ao Hospital Miguel Bombarda para tratar um dente doente. Mas os dentes doentes não eram tratados, eram arrancados e assim sucedeu comigo. O dente foi arrancado, creio que sem anestesia eficiente, foi arrancado a sangue-frio, pois só me lembro dos meus berros suplicantes e inúteis - o dente extirpado pelo arrancador de dentes que se aproveitou do facto de uma criança ter ido só, para exercer triunfalmente o seu sadismo - e do meu percurso a pé até casa, uns três quilómetros distante, pelas avenidas floridas, indiferentes ao meu choro ininterrupto, pela vergonha, assim soluçante, de apanhar o machimbombo.
Outras experiências de contacto médico foram perpassando na minha vida, e tive ocasião de descrever algumas, entre outras, em texto que transponho de “Pedras de Sal”, em segunda edição contido em “Cravos Roxos”, aquele, dos anos setenta, este, dos anos oitenta, mas que evoca um episódio da minha infância passado com meu Pai, que me ficou gravado no horror da indignação sempre presente.
Com esse, creio demonstrar à srª D. Orkidea Lima, que, tal como ela, eu não me furtei, já de longa data, a denunciar o erro de uma sociedade desconcertante. Mas, ou por falta de saliência dos meus livros, como de outros, ou porque o ditado nos diz que quanto mais se mexe na porcaria nauseabunda mais ela se expande, cada vez mais nauseabunda, levando-nos à contestação do slogan “Tudo vale a pena” pessoano, ou porque já não mudamos na aquisição de preceitos éticos, ou por isto ou por aquilo, ou nem sequer por nada, amorfos que somos, continuamos. Amorfos. Eis o texto:
« “Comei-vos uns aos outros”
Bons cursos são ainda os dos médicos para se obterem coroas. Não, talvez, às bateladas, como alguns advogados ou engenheiros com clientes e empresas de vulto próprias para um rápido alcance da áurea fortuna, mas é um dinheiro que vai pingando, como o sebo derretido a amontoar-se no fundo do pires: 300$00, 400$00, 500$00, 600$00, 750$00, etc, assim os médicos famosos, ao verem os doentes sem fama e com dores em dez minutos ou quinze – às vezes mesmo cinco bastam para analisar a natureza delas – das dores – fazem pagar cada letra da receita, incluindo as da assinatura, felizmente reduzida, senão maior seria a despesa do doente sem fama, a peso de ouro.
Ao fim do dia, não lhes deve ser difícil, aos médicos famosos, conseguirem acumular o que os seus doentes ganham em um mês ou dois e é consolador sabermos que, graças à profusão de doentes, a cidade aumenta de médicos abastados, capazes das grandes obras sociais, como sejam, a construção de prédios para embelezamento das artérias citadinas.
Há sempre refractários às consultas, daqueles que aguentam dores, para não terem de chorar a falta do pão e do arroz, também muito aumentados. Mas acabam por transigir com a ciência esculapina, pois o sofrimento faz esquecer o arroz.
Por vezes os médicos mandam voltar para revisão e a gente agradece reconhecidamente o interesse demonstrado pelo senhor doutor pelo nosso caso mórbido, mas as revisões também são pagas, com pequeno abatimento, mesmo que aquele só tenha comprovado que vamos indo melhorzinhos, graças a Deus, a ele, e aos antibióticos, de eficiência e careza perfeitamente demonstradas.
A gente julga que os médicos, além de terem aprendido a tratar os males – embora haja alguns muito desastrados que até nem isso, apesar dos antibióticos – estudaram uma qualquer disciplina de ética profissional, que equipara o seu ofício a uma espécie de sacerdócio do tipo João Semana, onde a dedicação pelos homens e suas dores os induzirá a não extorquirem o coiro e o cabelo aos pobres miseráveis doentes que não se podem furtar a serem extorquidos, uma disciplina que os levará a travarem, uma ou outra vez, os seus passeios dos fins-de-semana, quando os desastres ou as dores mais se lembram de atacar, e os médicos citadinos, de bolsas bem cheias com as receitas da semana, fizeram debandada geral para gozo de aprazíveis férias.
Outras vezes são outros compromissos que os impedem de estar presentes. Nunca me esqueço de que, quando pequena, o meu pai, martelando no quintal num domingo de manhã, feriu-se gravemente num olho com um prego. Foi em veloz táxi para casa do doutor dos olhos, mas era a hora da missa e aquele mandou-o esperar enquanto ele cumpria as suas devoções, que depois da missa inspeccionaria o olho ensanguentado com a alma mais limpa doe pecados e a visão mais clara do mal.
Esta febre medical de atingir num ápice o cume do bem-estar e da importância gerados pela riqueza não tem controlo, tal como sucede actualmente em todos os outros sectores da vida económica e da administração.
As taxas telefónicas, por exemplo, abrangeram neste mês da graça, já dois meses de ajudas de custo, além dos 200 ou 300% a mais que se pagam do restante, provocado pelo excesso de chamadas resultante do cruzamento de linhas que obrigam a discar duas erradas para se obter a chamada certa, ou a desligar a certa para não se escutarem duas erradas que poderão estar a roer-nos na pele em cruzamento inocente. Também o papel higiénico aumentou de preço e diminuiu de volume e de possibilidade de aquisição e até as próprias conservas deixaram de conservar o preço anterior, num duplo-salto espalhafatoso.
E o povo protesta mas paga, e o coro geral é de horror e de estupedificação perante a avalanche com que uns homens, como vampiros, saltam em cima dos outros, sugando-os e esfolando-os com animação.
“Comei-vos uns aos outros”... Mas o mal é que nisto de comer são mais os uns do que os outros, e sem reciprocidade.»
E tudo isso alastrou, na amorfia da democracia reinante.
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