No almoço de domingo, que continuamos a compartilhar com a minha Mãe, agora na sua cadeira de rodas, e que não se calou, feliz, na sua berlinda de evocações, em que refina, com cada vez mais precisão de dados:
- Que dia é hoje?
- Domingo de Pascoela, informamos, pacientemente.
E logo ei-la que repete a velha história da caminhada anual com a mãe, pelas serras fora, até Paredes, terra da mãe – a “Madrinha” do Carregal, que execrara o nome de “Avó” – onde esta ia nesse dia levar o folar às afilhadas que lá deixara quando casara. E as lágrimas escorrem pelas faces da minha Mãe, de saudade, mas de revivescência também dos cansaços dessas caminhadas pedregosas que a enternecem sobre si própria.
E atrás da caminhada vêm outras recordações em catadupa, parece que a minha Mãe se reservou toda para os tempos de outrora, que repete, numa dimensão que não conhecia, entremeadas de cantares e reflexões:
- Cantavam-se músicas religiosas, a Santa Combinha, a Senhora da Saúde, o Senhor da Serra...
“Ó Senhor da Serra vai
Gente de toda a Nação.
É só para ver a Deus
E os Santos que lá estão”
canta, com voz trémula de velhice e emoção.
Hoje veio à baila também a história do pai, que lhe ensinou as primeiras letras, antes de contratar uma professora que se revelaria maçónica. Era à luz de uns espetos de queirós – aguços – que o pai trazia aos molhinhos do monte e embranqueciam depois de esfregados e ressequidos, ardendo bem.
-Muito mal se vivia, lembra a minha Mãe, na constatação das comodidades em que é agora envolvida.
- Então mas não havia azeite ou velas de cera?- É a minha irmã que estranha.
- Lembro-me das almotolias gordurosas - recordo também.
- Havia azeite, tínhamos oliveiras e cortiços, mas era para vender, e o azeite também para cozinhar, - responde a minha Mãe, na constatação feliz das farturas de outrora, sem esbanjamentos desnecessários.
- Mas havia um petromax na sala nova – falo vagamente.
- Mas era raro usar-se petróleo, era preciso poupar. Muito mal se vivia!
E a seguir vêm as histórias ligadas à família do meu Pai, que tinha tias e tios, que fizeram batota nas partilhas.
- Eu lembro-me da sogra da tia Lisete, em Destriz, quando lá fui numas férias – a tia Lisete, irmã da minha Mãe, fora um dos meus ídolos na infância – a contar que o papá quando levava as cabras para o monte em criança, ia sempre a ler pelos caminhos.
Recordámos o professor Nogueira das Benfeitas, exemplar perfeito da escola rude daqueles tempos, brutal, mas que ensinava bem. Os seus três alunos da quarta classe – entre eles o meu Pai, que o admirava – fizeram exame em Viseu e passaram com distinção.
A minha avó paterna sempre sofrera bem, menosprezada pela família, porque teve o seu filho solteira – filho de um padre a quem servira em nova. Era uma mulher seca e severa, a Avozinha, que passava temporadas na nossa casa, em Pinheiro de Lafões, antes de partir para África connosco, para junto do filho.
E neste momento de ternura familiar, é em sua homenagem que transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, publicado em 1973, - “O Pecado”, texto já sem relevo hoje, que se ultrapassaram os tabus do preconceito humano:
«Era solteira e teve um filho. Criava-o com amor, como se nesse filho procurasse o elo da cadeia que ainda a prendia à vida, depois do seu “pecado”. Porque, apesar da alegria comovida causada pelo pequenino ser apenas dependente dela, como reflexo do desprezo da família e conhecidos, passou a viver acabrunhada, deixando-se vencer pelos atavismos e convencionalismos de uma sociedade mais pronta sempre a atacar do que a defender e lançando geralmente o dedo acusador sobre o fraco para melhor esconder as suas próprias fraquezas. E ela bem via essa espécie de mistificação que a revoltava, mas fora criada dentro dos bons princípios, também ela criticara as que haviam escorregado na estrada lamacenta e aceitava, pois, humildemente as críticas, viessem, embora, dos menos “idóneos”.
Breve, a ideia de pecado avassalou-a e achou merecido o castigo imposto pela sociedade ao votá-la ao desprezo, tal como o fizera aquele que a abandonara e ao filho e que vivia feliz e impune na mesma sociedade aonde o “macho” é rei e orgulhosamente pecador.
Ela suportava o seu fardo, trabalhando para o filho e tentando vencer as despesas múltiplas surgidas, desde a casa alugada e a respectiva mobília, até à alimentação e ao jardim infantil onde as exigências do seu emprego a forçavam a meter a criança. A vida dela seria uma luta, um esticar da magra bolsa para sobreviver, e isso desde o nascimento do seu bebé para justificar o qual tivera que apresentar o atestado médico comprovativo de doença, pois o Estado lhe não concedera os trinta dias estipulados para as mulheres casadas legalmente.
Lutava, pois, corajosamente, tentando desenvencilhar-se, mas nos momentos de desânimo não deixava de referir o seu “pecado” que a conduzira àquela condição difícil.
Eu admirava-a, mas detestava ouvi-la falar em “pecado”. Porque ter um filho não é pecado. Seria negar a natureza e o dom divino de criar, considerar um filho um “pecado”. E o mais espantoso ainda é a boa fé, ou antes a ingenuidade do homem, ao incriminar a mulher que corajosamente se atreveu a deixar sobreviver o fruto amado dos seus amores.
Pecado um filho? Pecado é atraiçoar, é ser mesquinho, é deixar que a inveja nos corroa, é ser falso e desonesto, ser vaidoso e ser injusto.
Um filho é um milagre a cada passo renovado, algo que dá significação à natureza humana, na maravilha inefável do seu desabrochar.
Não, um filho não é pecado.»
Para ti, avozinha, Rosa Maria Henriques, que, em Lourenço Marques não falhavas a missa diária mais matutina, e um dia caíste no passeio, com o AVC fatal, que tão pouco tempo te manteve junto de nós, naquela terra estranha para ti, habituada que estavas aos espaços verdejantes da tua Destriz natal. A minha saudade, feita de memórias infantis, de uma proximidade reticente. Sou agora mais velha do que tu, quando morreste.
- Que dia é hoje?
- Domingo de Pascoela, informamos, pacientemente.
E logo ei-la que repete a velha história da caminhada anual com a mãe, pelas serras fora, até Paredes, terra da mãe – a “Madrinha” do Carregal, que execrara o nome de “Avó” – onde esta ia nesse dia levar o folar às afilhadas que lá deixara quando casara. E as lágrimas escorrem pelas faces da minha Mãe, de saudade, mas de revivescência também dos cansaços dessas caminhadas pedregosas que a enternecem sobre si própria.
E atrás da caminhada vêm outras recordações em catadupa, parece que a minha Mãe se reservou toda para os tempos de outrora, que repete, numa dimensão que não conhecia, entremeadas de cantares e reflexões:
- Cantavam-se músicas religiosas, a Santa Combinha, a Senhora da Saúde, o Senhor da Serra...
“Ó Senhor da Serra vai
Gente de toda a Nação.
É só para ver a Deus
E os Santos que lá estão”
canta, com voz trémula de velhice e emoção.
Hoje veio à baila também a história do pai, que lhe ensinou as primeiras letras, antes de contratar uma professora que se revelaria maçónica. Era à luz de uns espetos de queirós – aguços – que o pai trazia aos molhinhos do monte e embranqueciam depois de esfregados e ressequidos, ardendo bem.
-Muito mal se vivia, lembra a minha Mãe, na constatação das comodidades em que é agora envolvida.
- Então mas não havia azeite ou velas de cera?- É a minha irmã que estranha.
- Lembro-me das almotolias gordurosas - recordo também.
- Havia azeite, tínhamos oliveiras e cortiços, mas era para vender, e o azeite também para cozinhar, - responde a minha Mãe, na constatação feliz das farturas de outrora, sem esbanjamentos desnecessários.
- Mas havia um petromax na sala nova – falo vagamente.
- Mas era raro usar-se petróleo, era preciso poupar. Muito mal se vivia!
E a seguir vêm as histórias ligadas à família do meu Pai, que tinha tias e tios, que fizeram batota nas partilhas.
- Eu lembro-me da sogra da tia Lisete, em Destriz, quando lá fui numas férias – a tia Lisete, irmã da minha Mãe, fora um dos meus ídolos na infância – a contar que o papá quando levava as cabras para o monte em criança, ia sempre a ler pelos caminhos.
Recordámos o professor Nogueira das Benfeitas, exemplar perfeito da escola rude daqueles tempos, brutal, mas que ensinava bem. Os seus três alunos da quarta classe – entre eles o meu Pai, que o admirava – fizeram exame em Viseu e passaram com distinção.
A minha avó paterna sempre sofrera bem, menosprezada pela família, porque teve o seu filho solteira – filho de um padre a quem servira em nova. Era uma mulher seca e severa, a Avozinha, que passava temporadas na nossa casa, em Pinheiro de Lafões, antes de partir para África connosco, para junto do filho.
E neste momento de ternura familiar, é em sua homenagem que transcrevo um texto de “Prosas Alegres e Não”, publicado em 1973, - “O Pecado”, texto já sem relevo hoje, que se ultrapassaram os tabus do preconceito humano:
«Era solteira e teve um filho. Criava-o com amor, como se nesse filho procurasse o elo da cadeia que ainda a prendia à vida, depois do seu “pecado”. Porque, apesar da alegria comovida causada pelo pequenino ser apenas dependente dela, como reflexo do desprezo da família e conhecidos, passou a viver acabrunhada, deixando-se vencer pelos atavismos e convencionalismos de uma sociedade mais pronta sempre a atacar do que a defender e lançando geralmente o dedo acusador sobre o fraco para melhor esconder as suas próprias fraquezas. E ela bem via essa espécie de mistificação que a revoltava, mas fora criada dentro dos bons princípios, também ela criticara as que haviam escorregado na estrada lamacenta e aceitava, pois, humildemente as críticas, viessem, embora, dos menos “idóneos”.
Breve, a ideia de pecado avassalou-a e achou merecido o castigo imposto pela sociedade ao votá-la ao desprezo, tal como o fizera aquele que a abandonara e ao filho e que vivia feliz e impune na mesma sociedade aonde o “macho” é rei e orgulhosamente pecador.
Ela suportava o seu fardo, trabalhando para o filho e tentando vencer as despesas múltiplas surgidas, desde a casa alugada e a respectiva mobília, até à alimentação e ao jardim infantil onde as exigências do seu emprego a forçavam a meter a criança. A vida dela seria uma luta, um esticar da magra bolsa para sobreviver, e isso desde o nascimento do seu bebé para justificar o qual tivera que apresentar o atestado médico comprovativo de doença, pois o Estado lhe não concedera os trinta dias estipulados para as mulheres casadas legalmente.
Lutava, pois, corajosamente, tentando desenvencilhar-se, mas nos momentos de desânimo não deixava de referir o seu “pecado” que a conduzira àquela condição difícil.
Eu admirava-a, mas detestava ouvi-la falar em “pecado”. Porque ter um filho não é pecado. Seria negar a natureza e o dom divino de criar, considerar um filho um “pecado”. E o mais espantoso ainda é a boa fé, ou antes a ingenuidade do homem, ao incriminar a mulher que corajosamente se atreveu a deixar sobreviver o fruto amado dos seus amores.
Pecado um filho? Pecado é atraiçoar, é ser mesquinho, é deixar que a inveja nos corroa, é ser falso e desonesto, ser vaidoso e ser injusto.
Um filho é um milagre a cada passo renovado, algo que dá significação à natureza humana, na maravilha inefável do seu desabrochar.
Não, um filho não é pecado.»
Para ti, avozinha, Rosa Maria Henriques, que, em Lourenço Marques não falhavas a missa diária mais matutina, e um dia caíste no passeio, com o AVC fatal, que tão pouco tempo te manteve junto de nós, naquela terra estranha para ti, habituada que estavas aos espaços verdejantes da tua Destriz natal. A minha saudade, feita de memórias infantis, de uma proximidade reticente. Sou agora mais velha do que tu, quando morreste.
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