segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A alegria de dar



A tradição é de que somos um povo acolhedor, que senta à sua mesa quem lhe bate à porta e lhe dá pão e vinho, ou a bucha para o caminho. Foi, pelo menos, o que escreveu Reinaldo Ferreira, e que Artur Fonseca musicou, em Moçambique e alguém cantou no Rádio Clube, julgo que eu estava lá, era no meu tempo do liceu.  Mas foi Amália Rodrigues que, com a sua voz intraduzível, a tornou passaporte da nossa projecção no mundo, nessa época de Salazar, de frugalidade e modéstia, que hoje todos consideram bafienta, porque repressiva de certas liberdades e redutora de bem-estar - embora não generalizada esta última faceta, como é natural, contida, embora, apologeticamente, na canção. Vejamos a letra tão simpática e escutemo-la com unção na voz divina:
Casa Portuguesa
Numa casa portuguesa fica bem,
pão e vinho sobre a mesa.
e se à porta humildemente bate alguém,
senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem esta franqueza, fica bem,
que o povo nunca desmente.
A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente.

Quatro paredes caiadas,
um cheirinho a alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
um São José de azulejos,
mais o sol da primavera,
uma promessa de beijos,
dois braços à minha espera.
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!

No conforto pobrezinho do meu lar,
há fartura de carinho.
e a cortina da janela é o luar,
mais o sol que bate nela...
Basta pouco, poucochinho p'ra alegrar
uma existência singela...
É só amor, pão e vinho
e um caldo verde, verdinho
a fumegar na tigela.

Quatro paredes caiadas, (bis)

É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa! 

Foi por isso que Jardim mandou semear várias casas na Madeira e em Porto Santo, mesmo sem registo de propriedade, para mostrar ao mundo o quão acolhedores somos. Em princípio, parece que as casas serviam para acolher caminhantes e pastores, mas afinal foi Jardim e os seus membros do Governo, que se aproveitaram delas, todas com lindas vistas, como mostram as fotos, do Público de 30/8 e alguns dizeres de ocupação dos tempos: “Jardim costumava passear pela praia no Porto Santo, acompanhado por jornalistas e amigos, comentando a actualidade”, além de outros registos de fotografias de casas com campos de ténis e jardins para as férias de membros do governo, etc, etc, que o novo chefe do Governo Regional se propõe cancelar: «Albuquerque acaba com “absurdo” das casas de férias de Jardim» lê-se em título.
 Mas o facto de serem casas de férias, em nada isso as incompatibiliza com o sentido da canção, que nos define como povo generoso, antes pelo contrário, excluído o “humildemente”, que esse é que é profundamente incompatível com os traços caracterológicos de Jardim. Também julgo que as suas recepções ultrapassavam, em vitualhas, o pão e vinho da generosidade pelintra das quatro paredes caiadas. Afinal Jardim era contra a austeridade que Passos implantou no país e saiu-se bem, nos seus passeios discutindo altissonantemente, como é seu hábito, essas políticas, que não quadravam à sua generosidade, por conta alheia que fosse.

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