De facto, não há como os aniversários ou os Natais, para
irmos reavivando o stock dos livros que foram nossos companheiros na vida e que
preservamos, juntamente com os herdados, pois tanto significaram e significam,
em recurso de apoio, de memória, ou de prazenteira diversão, amigos fiéis e
«para siempre».
Assim, este ano recebi 3 livros de publicação recente,
que tomei como tema ligeiro de crónica, para eu própria me ajudar a
descodificá-los e a entendê-los, na originalidade ou subtileza da sua escrita
que a roda do tempo vai favorecendo, em novas achegas de modernidade e
mensagem.
Entre eles, o romance «Le Collier rouge», de Jean-Christophe
Rufin, de l’Académie Française, (Éditions Gallimard, 2014),
oferecido pela minha neta Ana Margarida, com uma dedicatória que comprova o seu
jeito da escrita e do trocadilho – “Un petit roman pour les quatre-vingts,
en espérant, au moins, encore vingt-quatre de plus” - perspectiva que, a
verificar-se, talvez não dê já então para poder “saborear” a graça da sua
escrita, interrompida agora pelos afazeres do tempo, mas que retomará nesse, próximo
da sua reforma, mais propícia ao tempo de solidão ou de ripanço, ou de
aproveitamento para pôr em dia o que ficou para trás em inércia ou indiferença.
Não deixa de ser extraordinariamente saboroso, nas liberdades que propicia,
esse tempo da reforma, pelo menos enquanto não chega o da apatia ou da cadeira
de rodas, embora a perspectiva do ataque cardíaco fulminante ou do «acordar-se
morto» mereça uma maior adesão geral, tenho a certeza, o que não é de estranhar
com tanto ruído e desgraça a rodear-nos, ou mesmo discursos das catarinas
martins da bondade e pureza de intenções, ameaçadores, entre outros, dos acidentes cardiovasculares.
Ao contrário do livro «Nenhum olhar», de
José Luís Peixoto, de leitura mais densa e com mistura de estilos e
conceitos, “Le Collier Rouge” logo seduziu pela perfeita clareza de um estilo
coerente de enigmas e pistas acompanhando a reconstituição dos factos de uma
história verdadeira, sem pretensões de
dificultar a compreensão do narrado, mas onde a descodificação dos
comportamentos apresenta conhecimento amplo do género humano, sem ilusão nem
intenção moralizante, ao compasso da efabulação, embora um olhar picaresco nela
perpasse facilmente. Não provoca a gargalhada, tantas vezes desbragada, no
exagero deformador do nosso Eça por exemplo, e no entanto uma visão satírica
acompanha frequentemente o narrado – a par, é certo, da seriedade com que
desmistifica intenções e se apercebe dos meandros da psicologia humana.
Uma história que parece de intriga simples, mas que
vai evoluindo de forma ardilosa, criando suspense, no interesse permanente do
passo seguinte, que aclare a dúvida e deslinde a trama, à maneira da novela
policial, de pesquisa e raciocínio esclarecedor: um cão que há dois dias de um
calor intenso ladra ininterruptamente, junto a uma prisão com um só guarda – Dujeux
– e um só prisioneiro – Morlac – chegado há dois dias, e onde o juiz
militar Hughes Lantier du Grez vai reconstituir o processo: Eis a súmula
da obra.
Com tanta parcimónia de dados e personagens iniciais –
alguns outros surgidos posteriormente - parece não haver perspectiva de um
enredo de grande amplitude, mas os gestos ou as atitudes das personagens vão
progressivamente alertando para o drama subjacente à rebelião do prisioneiro,
além de que a técnica de reconstituição dos factos, pelo juiz, no seu jogo do
gato e do rato, minimizando factos para merecer reacções, junto de um
prisioneiro pouco colaborador, demonstra uma perfeita qualidade de composição e
sobriedade.
Eis alguns passos iniciais da intriga que revelam toda
uma arte humanística na composição dos cenários físicos e humanos:
«Por esta canícula, ninguém se arriscaria a sair. Os
uivos repercutiam-se de fachada em fachada, nas ruas vazias. Por um momento,
Dujeux teve a ideia de se servir da sua pistola. Mas estava-se agora em paz;
ele perguntava-se se tinha o direito de fazer fogo, em plena cidade, mesmo
só sobre um cão. Sobretudo, porque o
prisioneiro poderia, com isso, ganhar argumentos para excitar ainda mais a
população contra as autoridades.
Pouco é dizer que Dujeux o detestava, a este. Os polícias
que o tinham prendido também tinham tido má impressão dele. O homem não se
defendera quando o conduziram à prisão militar. Ele olhara-os com um sorriso de
doçura de que não gostaram. Sentiam-no seguro do seu feito, como se tivesse
aceitado partir de sua plena vontade, como se só dele pudesse partir o
desencadear de uma revolução no país.»
E o monólogo interior continua, neste aperto de
revolta, Dujeux com as suas dores de cabeça, fechando portas, apesar do calor,
porque os uivos do cão lhe causavam enxaqueca.
As gentes da cidade tinham tomado o partido do
prisioneiro, ao contrário de Dujeux, respeitador das regras e habituado à
disciplina da guerra. Mas a guerra - de 14/18 -acabara, o prisioneiro
fora considerado herói de guerra, a prisão deste - por um desacato ultrajante à
pátria, no acto da sua condecoração com a Legião de Honra, pondo-a ao pescoço
do cão – (o que só mais tarde será esclarecido) – a prisão não era mais lugar
de rigor e dureza, como dantes tendo o prisioneiro entrado há dois dias.
A chegada do juiz militar apanha o guarda a dormir,
não só porque passara a noite insone com os uivos contínuos do cão, mas porque
bebera talvez demasiado, das garrafas trazidas por Perrine do “Bar des
Marronniers”, que ele pagava pela janela por onde ela as passava, indiferente
aos uivos do cão, que até acariciara de passagem.
Mas o juiz não era dos que se preocupavam com
protocolos militares, sentado às cavalitas na cadeira, a colher informações
objectivas sobre o prisioneiro, incomodado com o calor, mandando abrir as
janelas, ansioso por despachar o assunto, mas interessado pelo cão, fazendo
perguntas e suposições sobre a nobreza de raça do animal, que para Dujeux não
passava de um rafeiro, guardador de rebanhos:
«Dujeux achou que mais valia não intervir. Mais um
aristocrata, um maníaco da caça a cavalo, um destes fidalgotes de província que
tanto mal tinham feito durante a guerra, com a sua soberba e incompetência.
- Bom, cortou o oficial sem entusiasmo. Vamos lá. Vou
ouvir o suspeito.»
É igualmente caricata a cena do primeiro encontro com
o prisioneiro - Morlac - petulantemente indiferente,
Dujeux dando ordem forte para ele se pôr de pé, o juiz cortês e sem
preconceito, o que provoca novo monólogo do descontente guarda prisional:
“Desde que acabara a guerra, nada era como dantes.
Mesmo a justiça militar parecia hesitante, enfraquecida, como este jovem juiz
demasiado amável. Ia longe o tempo em que se fuzilava sem estados de
alma.»
Entretanto o cão lá fora calara-se, talvez por
entender que o dono que ele acompanhara na guerra estava agora bem entregue, protegido
com a presença do juiz.
Temos, assim, um livro de grande perspicácia
analítica, a que não é alheia a desmontagem dos comportamentos, quer pelo
narrador não participante, quer, do ponto de vista da focalização interna, sobretudo
pelo juiz Lantier, interessado em libertar Morlac, mas defrontando-se com a
resistência deste em ser liberto, o que o intriga. Na reconstituição dos
factos, vai usando um jogo de gato e rato, ora minimizando factos para obter reacções,
ora usando o tom camarada, de quem sabe menos da história, ora elogiando o
comportamento heróico do “poilu”, em manobra inteligente para “desemburrar” o
prisioneiro renitente, a fim de poder ditar a sentença favorável com que deseja
rematar o seu último caso de prisioneiros de guerra:
Ex: « - Primeiro chutaram-no para a intendência em
Champagne, isso não deve ter sido assim tão penoso. Requisitar forragens nas
quintas, você sabe da poda. E não é perigoso. …
«Em seguida, você foi designado com a sua unidade para
o exército do Oriente. Chegado a Salonica em julho de 16. Pois bem, pelo menos
aquele calor não deve tê-lo incomodado muito! Você teve tempo de se habituar,
lá fora….
« - Você tem que me contar a campanha nos Balcãs.
Nunca percebi nada daquilo. Quiseram torpedear os Turcos nos Dardanelos e eles
expulsaram-nos para o mar, é isso? Em seguida juntaram-se em Salonica e
brincaram ao gato e ao rato com os Gregos, que não se decidiam a entrar na
guerra ao nosso lado. Estou certo? Em todo o caso, nós, no Somme, sempre
considerámos que os tipos do exército do Oriente eram uns doidos a
divertirem-se nas praias…
«- Seja como for, você distinguiu-se. Bravo. Agosto,
17, citação assinada pelo general Sarrail: «O cabo Morlac tomou uma parte
decisiva num ataque contra as forças búlgaras e austríacas. Na primeira linha
desse assalto, pessoalmente pôs fora de combate nove soldados de infantaria,
antes de ser ferido na cabeça e no ombro, e de cair sem sentidos no campo de
batalha inimigas. Ele aguentou até que os camaradas consiguissem levá-lo para as
linhas francesas durante a noite. Esta acção heróica marcou o princípio da
contra-ofensiva vitoriosa das nossas tropas na zona do Tcherna. Magnífico!
Todas as minhas felicitações!...
«- É necessário que tenha sido um acto duma bravura
excepcional para que lhe concedessem a Legião de Honra. … há razões para se
ficar particularmente orgulhoso. Você está particularmente orgulhoso, senhor
Morlac?......
«- Venhamos ao caso da sua detenção. Eu não posso
imaginar que um homem que ganhou a sua Legião de Honra em tais circunstâncias possa
tornar-se conscientemente culpado daquilo de que o incriminam. Imagino que você
estava bêbedo, sr. Morlac? ….Nesse caso apresente as suas desculpas, exprima um
arrependimento sincero e ficaremos por aqui ….
«- Não, disse o homem. Eu não estava bêbedo. E não
lamento nada. ….»
Um livro em que a tese do pacifismo – capital para a
compreensão do aparente acto heróico de Morlac que lhe valera a medalha da
Legião de Honra, que ele despachará para o cão – Guillaume - (segundo ele, o
verdadeiro herói, por cumprir dentro das normas requeridas da fidelidade aos
princípios nacionalistas) me lembrou “Les Thibault, que li nos tempos do liceu,
(onde havia uma boa biblioteca), e logo adquiri nos tempos da faculdade, no
encantamento de uma escrita de rigor, nos seus oito volumes de roman fleuve,
sobre duas famílias que se cruzam, e cuja personagem Jacques, em rebeldia com a
família burguesa, terá um percurso apaixonante para quem sempre se considerou
igualmente, na vida, alguém de pensamento livre e só manipulável pela própria consciência
moral adquirida na família.
O pacifismo de Morlac surge, todavia, em condições diferentes
das de Jacques Thibault, que pertencia a uma elite cultural, ao contrário do
pequeno camponês criado com os seus rebanhos, de parcas letras, mas cuja paixão
por Valentine, possuidora de uma estante com livros, faz que comece a ler, aos
livros de amor sucedendo a leitura de três obras herdadas do pai de Valentine –
de Rousseau, Marx e do anarquista Kropotkine – que o alertam para a revolta
contra uma guerra que viveu na pele, ao verificar quanto ela nada tinha a ver com
ideais impostos de patriotismo, mas apenas manipulação devastadora de homens,
como carne para canhão. Jacques Thibault fugira à guerra, por convicção
ideológica, tornando-se activista pacifista, Morlac trabalhara no silêncio, em complot pacifista
com soldados de várias nacionalidades, complot que o cão, que o acompanhara à
guerra, fizera abortar ladrando, a defender o dono, originando o massacre, e a
elevação de Morlac a herói merecedor da cruz de guerra.
Tudo isso vai sendo descoberto gradualmente pelo juiz
Lantier que o interroga, apesar da resistência de Morlac em se abrir e a sua
intrigante determinação em sofrer o castigo, além do estranho ódio pelo cão,
que o juiz vem a confortar e a estimar. Valentina fará parte também do
processo, pelo interrogatório inicialmente de respostas evasivas e gradualmente
mais efusivas, deixando transparecer uma grande paixão entre ela e Morlac, de
que resultara um filho. O ciúme por uma pretensa traição da mulher, fora a
verdadeira causa do estado de espírito de Morlac, de indiferença pelo castigo a
receber. Mas o juiz conseguirá desfazer a teia dos orgulhos e incompreensões e
a história terá, naturalmente, um fim feliz.
Quanto a Guillaume, será levado pelo juiz, de regresso
à família, um pobre cão com marcas da guerra, cuja dedicação pelo dono este mal
aceitara, mas que encontrará, certamente, na nova família, o carinho que a sua
dedicação merecia.
Eis o passo final deste livro encantador que nos
reconcilia com a vida:
XI: « O
carro corria através do campo….
Ele tinha querido viajar em trajes civis, para se
habituar já à nova vida que começava. Passado Orléans, sentia-se impaciente por
chegar a Paris, encontrar a sua mulher, os seus filhos. Como receberiam o
presente que lhes levava? Valia mais dizer-se que eles ficariam felizes por o
verem feliz. Porque, na verdade, não era um belo presente. Aliás, Morlac não
pusera dificuldades em lho oferecer.
Por momentos, Lantier voltava-se para o banco detrás,
e deitava um olhar para se assegurar disso: não, na verdade, não se tratava de
um belo presente. Ou antes, era a si próprio que o oferecia.
Estendia o braço e sentia as velhas bochechas sobre a
mão. Decididamente, que presente cómico.
- Não é verdade Guillaume? gritava.
E o cão tinha também ar de sorrir.»
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