Um artigo de Gabriel Mithá Ribeiro comedido nas suas
asserções de confronto entre o passado colonial e o presente independente, mostrando,
entre factos de estreiteza vivencial, pormenores de uma actualidade governativa
de oposição com a de outrora, quer no vestuário, quer na participação no
trabalho, quer na desigual distribuição do desenvolvimento da nação, quase
circunscrito à capital. Mas o aroma dos mangais ladeando a única estrada de terra
batida entre Quelimane e a Madal ainda é o mesmo da saudade de quem se lembra
das mangueiras a que trepava para colher as mangas verdes que devorava, mesmo
sem o sal com que Rui Knopfli baptizou um dos seus livros preciosos.
O artigo de Mithá Ribeiro, publicado no “A Bem da
Nação”:
PERTO DO RIO DOS ‘BONS SINAIS’ DE VASCO DA GAMA
Caminhei cerca de oito
quilómetros a pé da ‘cidade de cimento’ de Quelimane ao bairro
periurbano da Madal, no norte de Moçambique. Passada a primeira povoação,
continuei na única estrada de terra batida ladeada por mangais despovoados. Ao
início da manhã havia muita gente a caminhar em sentido contrário em direcção à
cidade. Iam a pé e sobretudo de bicicleta, muitas fazendo de ‘táxi’. Também
circulavam umas poucas motorizadas. Em qualquer caso, algumas transportavam
sacos com sal, farinha, carvão, milho, amendoim, fardos de lenha, havia um
cabrito rechonchudo torturado a cordas contra o suporte da bicicleta, entre outros
bens que, em geral, iriam ser negociados nos mercados da cidade. Como eu e o
guia que me acompanha, poucos eram os que ao início da manhã se afastavam da
cidade. Entre esses, uns quantos transportavam bens trazidos da cidade: tábuas
polidas, portas de casas, grades de bebidas como a ‘2M’, a cerveja nacional,
entre outros. Entretido com a paisagem, a caminhada, o movimento ou a conversa,
a certo passo alertou-me um sinal do poder estado, ou melhor, da sua ausência.
Atravessava uma ponte metálica, herança colonial que passa por cima de um dos
afluentes do rio. Junto à margem oposta havia um pequeno engarrafamento. Ora
passavam os de um sentido, ora os do sentido contrário. De perto vi que naquela
parte só é possível prosseguir a pé porque o tabuleiro da ponte fica reduzido a
uma largura pouco maior do que a de uma das vigas metálicas. Bicicletas e
motorizadas têm de ser levadas pela mão. Algumas das cargas exigem destreza aos
que as transportam porque o risco de queda não deixa dúvidas. Daí a ausência de
carros ou camiões naquele circuito.
A ponte serve muita gente
que habita numa das províncias mais populosas e economicamente mais periféricas
de Moçambique, a Zambézia. A sua restauração ou reconstrução valerá um quase
nada comparado com os sofisticados investimentos em betão que todos os dias
vemos crescer em Maputo, a capital no extremo sul.
Quem andar pelo país
apercebe-se do fascínio civilizacional, cultural, ideológico pela cidade e pelo
que ela representa, muito em particular pela cidade grande, os mesmos espaços
que num passado não muito longínquo eram a reserva civilizacional do colono. Há
semanas na Matola (Maputo), um dos indivíduos comuns com quem vou falando
opinou (cito de cor): ‘A diferença é que no tempo colonial os brancos iam para
o mato e agora os nossos dirigentes ficam só na cidade’. Tese exagerada, porém
sintomática.
Ela conduz ao enigma das
raízes culturais dos africanos habitualmente rotuladas de ‘profundas’. Ou são
de tal modo profundas que dificilmente se rompem ou, por serem profundas, os
próprios rompem-nas sem retorno para abrirem caminho a uma alteridade
identitária ultra-acelerada. Por essa razão, escudam-se num mal disfarçado
estado de negação antieuropeu.
Não faz muitos anos, um
intelectual e político negro moçambicano criticava com aspereza o facto de a
sua sociedade ser regulada pelo que designava por “norma branca”, uma herança
colonial perversa ainda não ultrapassada. Por sua causa, explicava, os
autóctones abandonaram a sua matriz identitária, cultural e civilizacional
africana. Curioso é que esse mesmo intelectual e político sugeriu que a
entrevista que lhe solicitei decorresse no luxuoso hotel Polana, em Maputo,
vestia-se da mais apurada indumentária de origem europeia, exprimia-se num
português límpido de fazer inveja e é descendente de uma família de
assimilados, a elite autóctone criada no tempo colonial. Ainda que não quisesse
julgá-lo, saltavam à vista as dissonâncias entre discurso e práticas, entre
atitudes e comportamentos. Prosseguindo a caminhada na estrada de terra batida
e quando a ponte metálica se perdeu da vista, aproximei-me de um troço no qual
a areia solta dificultava um pouco mais a circulação. Nova revelação: afinal o
poder do estado dava um ar da sua graça junto das pessoas comuns. Cerca de meia
dúzia de polícias municipais mandavam parar os transeuntes para lhes exigirem a
licença da bicicleta e o documento da permissão de condução. Os azarados ou
distraídos tinham de pagar uma multa para seguirem viagem. O guia informou-me que
era de cinquenta meticais e, de seguida, tinham de ir tratar da legalização na
cidade. O custo era de cento e cinquenta a duzentos meticais, valor muito acima
de um salário diário médio, se se quisessem livrar de futuros incómodos.
Como o mangal que ladeia
a estrada tinha zonas sem água, em vez de regressar à procedência, um ou outro
ciclista indocumentado metia-se pelo mangal lodoso, por vezes com passageiros
ou carga, e saía mais à frente contornando as autoridades, um ou outro a
barafustar contra os abusos do poder e contra o matope (lama) agarrado ao
calçado.
Não sei se tal controlo
policial faz sentido. O que sei é que o episódio trouxe-me à memória relatos
dos piores dias da guerra civil (1976-1992) quando as pessoas dificilmente
conseguiam passar por certos controlos nas estradas sem que fossem molestadas
por militares. Estes poderiam confiscar-lhes bens conseguidos e transportados a
muito custo ou cometer todo o tipo de abusos no caso de os viajantes serem
renitentes. O tempo passa e as pessoas vão suportando os fardos da vida.
No destino, o bairro
periurbano da Madal, tive a sorte de falar longamente com o régulo. Conserva na
memória a permanência por seis meses em Portugal, no ano de 1958, e de então
ter ouvido falar na campanha presidencial do general Humberto Delgado. Tinha
treze anos quando começou a trabalhar, em Quelimane, como empregado doméstico
do comandante do navio ‘Lúrio’. Próximo do rio que Vasco da Gama baptizou de
‘Bons Sinais’, entre outros assuntos, o régulo contou a sua versão da história
do império colonial, a que sobrevive com as pessoas que (também) o viveram. A
outra é a versão rainha, a dos livros e das universidades. Por alguma razão vou
preferindo o sentido atribuído à vida e ao tempo que passam pelas pessoas
comuns antes que os mais velhos se desliguem da vida e, com eles, as suas
subjectivas e indiscutíveis verdades.
Gabriel Mithá Ribeiro
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