Um provérbio optimista encima a última página do Público
de 4 de setembro. É de Cervantes e garante que «Um dos efeitos do medo é
perturbar os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são». Mas
tal não se comprova com o D. Quixote, que era valente, e se arriscou contra o
que, sem medo, lhe pareciam ser gigantes sequestradores, quando não passavam de
moinhos de vento – que, aliás, logo o derrubaram, tal como o fariam quaisquer
gigantes que prezassem a sua reputação de derrubadores. O medo faz que as
coisas não pareçam o que são, mas outros motivos estão também na origem
desse preconceito: em D. Quixote, o excesso de leituras fantasiosas de
cavalaria justificou a perda de noção da realidade, como se sabe, daí esse caso
dos gigantes que, na realidade, não passavam de moinhos. O medo está na origem
dos presságios, cuido eu, que agora mal guio, quando já fui arriscada, a guiar
sem travões, devagarinho, agarrada ao travão de mão nas descidas, ou a entrar
pela serra de Sintra pelo lado do Guincho, com a minha mãe apavorada em avisos,
no banco da frente, e o meu pai e a minha sogra caladinhos, atrás, mais
contidos, no Peugeot de volante à direita, que o meu marido me mandara de
África, para mais com um buraco de bala que nunca soubemos donde proveio… Isso
foi quando chegámos de África e eu quis conhecer a serra de Sintra que tinha na
memória como pertencente ao sistema Lusitano–Castelhano (Estrela, Lousã,
Aire, Candeeiros, Montejunto, Sintra, Buçaco, Caramulo, Montemuro e Gardunha),
mas estas devem ser as mais conhecidas, tantas são as serras que nos encerram.
Sintra de Lorde Byron, a Sintra d’«Os Maias», a do complicado folhetim policial
«O Mistério da Estrada de Sintra», também da écloga «Crisfal» - «Antre
Sintra, a mui prezada, e serra de Ribatejo que Arrábida é chamada, perto donde
o rio Tejo se mete n'água salgada, houve um pastor e pastora, que com tanto
amor se amaram como males lhes causaram este bem, que nunca fora, pois foi o
que não cuidaram.…» Mas a minha
mãe passou o tempo a lembrar salteadores de estrada provavelmente das histórias
de outrora, à lareira, e difícil se tornou a travessia, feita sem propósitos
cavaleirescos de libertação de donzelas, nem rocambolescos de investigação
criminal, e apenas no prazer da curiosidade e atrevimento também, não nego.
Agora tenho medo de guiar, mas ainda vou conduzindo, para chegar mais depressa,
embora já não a Sintra, pois me limito às periferias.
Tal é o tema também do artigo de Vasco Pulido Valente,
da mesma página: “O MEDO”, sobre o estado de espírito não só dele mas das
pessoas com quem contactou lá no norte, as quais se abstêm de falar em
política, tendo aparentemente isso proporcionado umas férias tranquilas a Vasco
Pulido Valente. Paradoxalmente, todavia, informa que tudo anda cheio de medo,
medo do governo que se vai seguir, medo do futuro que parece encrencado com o
governo que está, talvez medo de que não ganhe o partido de quem se gosta, ou
que ganhe o de quem se não gosta, o que para Pulido Valente nada significa de
relevante… Por outro lado, o regresso de férias leva-o sem medo à frontalidade
dos seus ataques, contra os caciques e o caciquismo, que não sei se provém
antes da irreverência habitual de quem não quer ver as dificuldades de uma
governação que pretende ser honrada, e de quem aponta apenas a inépcia,
tentando, desta forma, orientar a opinião dos muitos leitores que lhe admiram o
estilo e o saber, embora sem confiança também na do partido rival desse, no fundo porque
reconhece que era preciso fazer o que foi feito, por muito odioso que pareça em
resultados.
Mas bastaria olhar para as enchentes dos concertos, de
bilhetes bem caros, para pensar que o reino da Dinamarca não está tão
putrefacto assim, ou olhar para os que se arriscam, no Mediterrâneos, e que
tentam atravessar fronteiras de
sobrevivência, admirando-os, na coesão e coragem que mostram, coesão que a nós
falta, povo pacífico e passivo só aparentemente, encardido em ódio e mesquinhez.
Por mim, o meu medo é o de que não ganhe a coligação,
mas mesmo que perca, admirarei sempre Pedro Passos Coelho e a extraordinária
coragem que revelou e revela, não só tentando erguer o país do buraco, como
enfrentando todos os autodenominados “bem formados” que investigam muito, para
liquidar governo e país, cegos a tudo o que pareça ser positivo nessa
governação, para cuja conquista se não importam de adulterar argumentos, por só
quererem analisar uma das faces da realidade – a da austeridade em si – no desprezo
do que a motivou. E de contribuírem para o arruinar, com as manifestações
constantes impeditivas de seriedade no trabalho, além de que também não têm
medo de não pagar a dívida do empréstimo, nem de mudar de moeda, ao que
afirmam, tão doutores. Medo de votar? Mas os da esquerda não têm esse medo, e
votam sempre, em consciência de classe. Os do tanto faz preferem o futebol. Não
compromete tanto e poderão sempre informar, gloriosos, que não votaram neles,
nos que governam deficientemente.
O texto de Vasco Pulido Valente:
O medo
Público, 4/9/15
«Fui
ao norte passar as férias, mais precisamente ao Minho e a Trás-os-Montes. Pelo
caminho só havia um cartaz abandonado e sujo na Mealhada. Começou ali uma nova
educação: entrei num país sem campanha e sem eleições.
Vi
amigos meus, vi amigos da minha mulher; falei com o pessoal de hotéis, de
restaurantes, de bares. Ninguém, como se fosse de comum acordo, me disse uma
palavra sobre política. Não ouvi sequer uma alusão às trapalhadas do dia ou à
situação, um pouco mais grave, do país. Nada. Fiquei sem saber como é que os
fabricantes de sondagens conseguem extrair uma opinião ao português comum. Ou
se o português comum os vai aturando contraidamente por pena ou comodismo. Mas
não me pareceu que ninguém lhes respondesse por gosto.
O
descrédito da política não explica esta abstenção. Nem explica a tristeza que
encontrei por quase toda a parte. As pessoas andam inquietas. Pior do que isso
andam com medo. Medo do que lhes poderá suceder com António Costa ou com Passos
Coelho. Costa pede por aí “confiança”, ou seja, que não tenham medo dele. E
Passos finge que as coisas voltaram, ou estão a voltar, a uma normalidade que
as pessoas não reconhecem e não sentem. Calar a boca é o mais recomendável
nestas circunstâncias. A não ser com turistas. Os turistas não relembram
desgraças. Uma conversa com nativos corre imediatamente o risco de resvalar
para a gritaria ou, nos piores casos, para o insulto e a calúnia. A discrição
do país é com certeza a melhor maneira de atravessar o mau tempo com uma certa
paz.
Não
quer isto dizer que o medo se transforme em abstencionismo. Quer dizer que a
maneira como o medo irá votar não é calculável. Não me admirava nada que desse
uma maioria à coligação, ao PS ou a nenhum deles. Com os sarilhos que se
acumulam sobre a nossa cabeça, o medo cresce mas não pensa. E, não pensando,
talvez produza um desastre maior do que o que precisamente tentou evitar. Os
jornais de Lisboa chegam tarde ao norte, os noticiários da televisão despejam
dia a dia uma enxurrada de calamidades. Como acreditar, fora do jornalismo e
dos partidos, que meia dúzia de caciques nos proteja e defenda? Estes quinze
dias fora do circuito normal da minha vida e longe dos produtores de propaganda
mostraram bem a futilidade do formigueiro a que hoje voltei.»
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