Comentário ao texto de Adriano Miranda Lima, publicado no “A
Bem da Nação”:
Pena é que, sem
querermos analisar os prós, os contras, as circunstâncias condicionantes das
governações, nos julguemos de tal forma superiores para exigirmos de quem
governa tal requinte de qualidades, num rigor pretensioso e vão. Aquilo de que
tanto se acusou Salazar de não nos ter dado – a liberdade de voto –
tornando-nos um povo manietado e ordeiro – e que foi conquistado na Revolução –
agora desdenhamo-lo como coisa inútil ou sem valor. Para podermos jogar depois
com o nosso auto-elogio de não ter votado nesses a quem já sabíamos que faltava
«Ética; Integridade; Responsabilidade; Respeito pela lei; Respeito pelos
direitos do próximo; Transparência.» Que nos sobra a nós, talvez.
POLÍTICOS
SOMOS TODOS NÓS
Há
dias, num diálogo animado sobre as próximas eleições de 4 de Outubro, um amigo
meu dizia-me que só não voltará a abster-se se alguém, integrando uma força
política, lhe garantir a observância escrupulosa dos seguintes requisitos:
Ética; Integridade; Responsabilidade; Respeito pela lei; Respeito pelos
direitos do próximo; Transparência. Em suma, ele queria ver rostos humanos que
incarnassem a expressão inequívoca daqueles princípios. E poder-se-ia até
adiantar mais alguns princípios, mas o risco seria o de se acotovelarem, tal a
largura da ética que deve presidir ao exercício da política.
Retorqui-lhe
que há momentos na vida em que temos de largar o balão da utopia para aterrar
no chão firme da realidade, já que esta é inevitavelmente o resultado daquilo
que somos e construímos. Percebi que o desencanto do meu amigo se deve em parte
ao sistema eleitoral vigente, que nos impede de votar directamente em quem nos
representa, circunstância ainda mais perniciosa quando o comum das pessoas vota
num programa eleitoral sem sequer o ler e, portanto, sem conhecer o seu
conteúdo concreto. No entanto, a descrença do meu amigo tem um fundamento mais
amplo que, diga-se de passagem, é comum à generalidade dos cidadãos: o pouco
crédito da nossa classe política, tida como inepta, incompetente e
corrupta.
Mas
deve tal situação ser encarada como uma fatalidade, a ponto de afrouxar o
engajamento dos cidadãos nas causas públicas, desviando-os até do elementar
dever do exercício do voto? Penso seguramente que não.
Deduzi
que para esse amigo aqueles requisitos que considera essenciais para o
merecimento do seu voto só podem habitar no espírito de homens providenciais ou
predestinados. Homens que flutuem acima do comum dos cidadãos, que vivam numa
redoma que os mantenha imunes às contaminações da vida real. E então
perguntei-lhe se temos de imitar Diógenes e andar por aí em pleno dia com uma
candeia acesa à procura de um “Homem” para nos guiar. Saber se é mesmo
imperioso descobrir um “Homem”, que o mais certo é não existir, para
revitalizarmos as nossas esperanças de arrumar condignamente a casa comum.
Ora,
é a história do fenómeno político que demonstra que o caminho não pode ser
esse, porque não leva a parte alguma. Tempo houve em que se acreditou que
Salazar era conjunturalmente esse “Homem”. Hoje sabemos bem no que isso deu.
Salazar arrumou as contas públicas e acumulou ouro, é certo, mas deixou um país
pobre, atrasado, desindustrializado, analfabeto, privado de liberdades cívicas
e isolado internacionalmente. Mais recentemente, outros terão visto no Cavaco
Silva um homem providencial em determinado momento, ainda que poucas provas públicas
tenha dado antes para merecer semelhante crédito. Hoje, sabemos o que
verdadeiramente vale Cavaco Silva como político. Governou em tempo de vacas
gordas, mas não teve rasgo, sequer coragem política, para ousar empreender as
grandes reformas do Estado que poderiam ter carrilado o país para um futuro de
maior progresso social e estabilidade das contas públicas. Fora do poder,
apareceria mais tarde a criticar o “monstro da despesa pública”, quando foi ele
o seu criador e o principal responsável pelo esbanjamento perdulário dos fundos
comunitários. No actual cargo de presidente da república, a máscara caiu-lhe de
forma tão flagrante que ele acaba por ser um perfeito paradigma da falácia do
homem providencial.
Sucede
que a maioria dos votos dos portugueses tem sido canalizada para aquilo que
alguns designam por “Centrão”, constituído pelos partidos do arco do poder. Não
será uma grande descoberta sociológica concluir que os que normalmente votam no
“Centrão” são os mesmos que apoiaram Salazar ou votaram maioritariamente em
Cavaco Silva. De resto, convém recordar aos esquecidos que cerca de uma semana
antes do golpe militar do 25 de Abril, o chefe do governo, Marcelo Caetano, foi
alvo de uma mega manifestação de apoio popular na Praça do Comércio. Terá certamente
incorporado muitos dos que consagraram a Revolução de Abril no primeiro de Maio
seguinte. Não há que iludir, há uma maioria sociológica que pendularmente
oscila entre o PSD e o PS, maioria que, para o bem e para o mal, espelha o que
somos e o que queremos, o que permite inferir que os defeitos genéricos dos
nossos políticos mais representativos só podem provir do húmus nacional.
Em
2007, o filósofo José Gil publicou o seu ensaio intitulado “O Medo de Existir”
em que denuncia as características negativas da sociedade portuguesa,
considerando-nos imersos num nevoeiro existencial que não nos liberta para a
“Inscrição” nas grandes causas colectivas. É a sua teoria da “Não Inscrição”. É
de uma evidência inegável que todos nós padecemos dos mesmos defeitos que não
queremos ver nos nossos políticos, como se fosse possível aos genes
reconverterem-se em função do estatuto social e cultural. A inveja, o queixume,
a insídia, o despeito, o conformismo, a fuga à responsabilidade e aos deveres
cívicos elementares (abstencionismo eleitoral), a atitude emotiva e
superficial, tudo isto é o que nos aprisiona efectivamente no círculo de uma
distopia que não conseguimos esconjurar nem com o arranque daquele “dia inicial
inteiro e limpo” em que acreditou piamente a Sophia Mello Breyner. Antes de
questionarmos a ausência de virtudes em quem nos representa, temos de indagar
em que medida podemos ver legitimadas as nossas queixas, se afinal de contas é
a nação no seu todo, sem exclusões elitistas, que padece do vício da “Não Inscrição”.
Muitos se referem depreciativamente ao “Centrão”, mas não se lembram de que
essa construção sociológica traduz uma vontade maioritária e fideliza uma
escolha de meridiana identificação ideológica, que exclui epidermicamente a via
para as opções de cariz totalitário ou aventureiro. Só por isso, razão há para
alguma tranquilidade cívica, fazendo-nos supor que em princípio o nosso país
estará arredado de uma instabilidade política e social como aquela que assolou
recentemente a Grécia.
Quanto
ao resto, e designadamente sobre as causas genéticas dos nossos bloqueamentos
cíclicos ou das enfermidades da nossa classe política, poderia insinuar-se a
conclusão de que talvez não estejamos talhados para a democracia. Não me atrevo
sequer a ir por aí, até porque a solução homem-providencial também já
demonstrou que nada vale. Contudo, será sempre necessário pôr o dedo nas nossas
feridas colectivas, e isso passa por revisitar as malogradas experiências
liberais do passado. Observando o falhanço da monarquia constitucional e da
primeira experiência republicana, poderíamos inferir, sem perigo de grande
calinada na análise histórica, que o Liberalismo pode não ter contribuído desde
logo para cimentar a consciência cívica nacional, ao invés do que pensaram os
seus mentores, dentro dos princípios abstractos e genéricos de que a soberania
nas mãos do povo só poderá trazer benefícios à Nação, nomeadamente o
fortalecimento do sentimento de patriotismo e de unidade nacional. Mas, como
diz Karl Popper, “uma utopia liberal é inexequível quando um Estado é
projectado racionalisticamente sobre uma tábua rasa destituída de quaisquer
tradições”. Esta afirmação obriga, com efeito, a questionar se a sociedade
portuguesa cultivava tradições e práticas quotidianas que permitissem o encaixamento
mais ou menos ajustado da filosofia política do Liberalismo ou se este não foi
imposto de supetão por uns quantos intelectuais bem-intencionados, mas talvez
irrealistas, que se limitaram a importar ideias que fermentavam para lá da
fronteira. A resposta temo-la com o que se seguiu: queda de uma Monarquia
desprestigiada pelo próprio constitucionalismo e implantação de uma República
que acabaria por enredar-se nas suas contradições e insanáveis antagonismos e
bloqueios, abrindo portas à instauração da ditadura de Salazar.
Diz-se
que o caminho se faz caminhando. Tal significa que a democracia, qualquer que
seja o estágio do seu amadurecimento, tem de ser encarada como algo nunca
concluído e merecedor de cuidados permanentes. Por isso é que, antes de tudo o
mais, considero inaceitável o abstencionismo eleitoral, uma vez que o voto é o
que temos ao nosso alcance para escolher quem nos governa e como deve governar.
Adriano Miranda Lima
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