É certo que há os que não se
importam de destruir os seus monumentos de milhares de anos, levados por estranho
facciosismo que se diz religioso, em actos gratuitos de vandalismo, como se
fossem os agentes de transformação geológica que, irremediavelmente, vão
alterando as estruturas da Terra, mas seguindo um percurso temporal
relativamente lento. Aqueles são criminosos rápidos no agir, ao abrigo de uma
estranha religião que incita ao ódio e à selvajaria impunes.
Mas nós, que não somos
jihadistas, olhamos com indiferença igualmente destruidora aquilo que
representa criação e criatividade humanas e deixamos que o tempo faça o seu
trabalho de desgaste, passando ao largo, “na safra de apanhar”, sem nos
lembrarmos do “quebranto” que o mesmo “Saturno” deu ao Onzeneiro
da Barca...
António Barreto, sensível à
nossa inércia também criminosa, escreve o seu alerta, que deveria ser tomado
como prioridade de qualquer governo. Mas as nossas prioridades foram sempre
outras, e até muitas vezes indignas.
Em Julho de 1955, uma bolsa de
estudos, que havia então, possibilitou-me um mês de estudo em férias da
Sorbonne para estudantes estrangeiros. Religiosamente, cumpri o meu horário nas
aulas, mas reservei algumas tardes para visitar monumentos que recordo ainda –
o Louvre, embora incompleto, o museu Rodin, o Museu Grévin, a Notre Dame vista
de fora, como, aliás, o Arco de Triunfo, a Torre Eiffel… o palácio de
Versailles, le Bois de Boulogne, tudo isso pude percorrer então, com agilidade
e fervor, como recordo ainda. Mas o que mais me deslumbrou foi La Sainte
Chapelle e os seus vitrais que estavam a ser recolocados, pois tinham sido
retirados na Segunda Guerra. Nunca mais esqueci o esplendor de luz que
atravessava os seus vitrais, e suponho que pela primeira vez me dei conta do
trabalho a ter com os monumentos, sobretudo na contingência das guerras. Também
foi quando estudante que me deslumbrei com a Batalha, com as suas Capelas
Imperfeitas que certamente os desgastes do tempo não poupariam, pensava eu ao olhar para a ausência de tecto nas tão
perfeitas Capelas, pensando que se deveria remediar, ainda que com um guarda–intempéries
envidraçado, abobadado, colocado muito acima. Os poucos monumentos que tenho
visitado por cá, mostraram-me certa pobreza, apesar das riquezas que os
interiores ofereciam, sobretudo os monumentos religiosos, como a Sé de Évora, e
nunca esquecerei a forma descabidamente apalhaçada com que o “cicerone” do
Palácio de Vila Viçosa se ia referindo aos artefactos ou aos costumes dos
duques, creio que por snobismo parolo de democrata recente, pois foi ainda nos
anos 70 que o visitámos.
Creio que se fez muita coisa
no restauro dos nossos monumentos. Mas António Barreto – e com ele todos os amantes
da pátria e do património - desejaria
que fosse mais. António Barreto expõe com saber e decisão o seu parecer sobre
as prioridades na governação e nos cuidados a ter com a conservação do nosso
património. E “As minhas fotografias” que encima o seu texto, para além
da imagem da Virgem e o Menino de Santa Maria de Alcobaça (que também a
Internet mostra) colocou o seguinte texto:
A Virgem e o
Menino de Santa Maria de Alcobaça – A estátua já esteve em vários
locais da catedral. Agora, encontra-se numa pequena capela própria, no
Cruzeiro, à esquerda do altar-mor, em frente ao túmulo de D Pedro. É, para mim,
em Portugal, a mais bela estátua sacra, a mais bonita Nossa Senhora que
conheço, a mais humana, carnal e divina Santa Maria que jamais vi. Eu sei que
se trata de opinião e que a avaliação é subjectiva. É também o meu sentimento.
Mas já mais objectivo é o juízo que se pode fazer do Mosteiro de Alcobaça,
maravilhosa construção que deveria ser venerada e poupada, estudada e
preservada. Mas que, infelizmente, não recebe tudo a que tem direito.
Faltam-lhe pessoal, técnicos competentes, investimento em estudo e arranjo.
Carece de um destino cuidado para grande parte do mosteiro e dos claustros.
Ninguém tem a certeza de que, com ou sem hotéis, com ou sem mecenas, aquela
jóia única seja respeitada!
«Esta imagem lembra-me um soneto de Antero de Quental,
que começa assim:
"Num sonho todo feito de incerteza
de nocturna e indizível ansiedade
é que eu vi o teu olhar de piedade
e mais que piedade, de tristeza.
"Num sonho todo feito de incerteza
de nocturna e indizível ansiedade
é que eu vi o teu olhar de piedade
e mais que piedade, de tristeza.
Completo o
soneto- À Virgem Santíssima” - como homenagem a António Barreto e em
súplica aos sucessivos governos, para que atendam o seu apelo, transformando o
sonho em realidade:
«…..
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!
Pobre património
António Barreto
D.N.,28/816
- «Sem Emenda»
A discussão, sem fim, dura há dezenas de
anos. Vai tendo, conforme os tempos, problemas e soluções diferentes. Que
grau de prioridade deve ser atribuída à inventariação, à preservação, ao estudo
e à divulgação do património edificado? Muito? Tudo de que precisa?
Medianamente? Deixado ao mecenato privado? É mais importante do que as
"artes vivas" ou "performativas", como se diz agora? Mais
ou menos importante do que a música, a literatura, a pintura, o cinema e a
escultura? Dentro da área vastíssima da cultura e do ponto de vista das
políticas públicas, o que é mais importante, o património erudito e a
"alta cultura" ou as artes e tradições populares? A investigação é
mais importante do que a divulgação? O estudo é mais urgente do que a
disseminação popular e de massas?
A resposta mais fácil é aquela que está
no espírito de muita gente. Tudo é urgente, tudo é prioritário, não se deve
subestimar nenhuma área, todas as artes são importantes, todas as formas de
cultura são decisivas, todas as manifestações do espírito são indispensáveis, o
passado é tão importante quanto o presente e o futuro. São conhecidos esses
argumentos. Que não servem para nada, a não ser alimentar a polémica e manter
vivas as expectativas dos grupos de interesses.
A verdade é que é importante estabelecer
prioridades a partir de vários critérios: a beleza, a raridade, a importância,
o valor, o significado, o conhecimento, o contexto histórico, o custo, o perigo
de deterioração, a ameaça de destruição, o risco de apropriação indevida... É difícil enumerar tudo. Mas o
estabelecimento de prioridades tem de responder a muitos desses critérios. Até
porque nunca há dinheiro para tudo.
A prioridade política deveria ser
atribuída ao património histórico e cultural, nomeadamente o edificado. O estudo, a investigação e a
preservação deveriam ser as actividades prioritárias. Certas áreas do
património não deveriam nunca ser objecto de apropriação privada ou mercantil.
O mecenato privado de carácter comercial e publicitário deveria ser uma
faculdade acessória, discreta e condicionada, sendo privilegiado o investimento
público. As universidades, as associações culturais, profissionais e
científicas deveriam ser chamadas a colaborar. Os monumentos deveriam
ser rigorosamente estudados, investigados, acompanhados e protegidos.
Entre a penúria pública e a ganância
privada, muitos monumentos vegetam sem meios nem técnicos. Visitei recentemente alguns dos mais
conhecidos: Mosteiro de Alcobaça, Convento de Cristo em Tomar, Convento de
Mafra, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Igreja da Memória em Lisboa,
Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Tomar, Igreja de São Vicente de Fora,
Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Aqueduto dos Pegões em Tomar... Em
todos estes sítios, que sei serem alguns dos mais bem arranjados, detectei
progressos enormes, em comparação com o que se via há trinta ou quarenta anos. Mais
limpos, mais acessíveis, por vezes menos abandonados. Mas ainda hoje há
faltas e falhas imperdoáveis! O pessoal técnico é
insuficiente. Há miséria absoluta nas oficinas de restauro. É gritante a falta
de verba, de meios e de técnicos de restauro e de conservação. É diminuta a
formação técnica e cultural. São muitas as infiltrações nas paredes. Abundam a
erva e arbustos nos telhados. Há, por todo o lado, azulejos caídos e janelas
quebradas. Ainda se vêem alas inteiras arruinadas e claustros a caírem de
podre. Quase todos carecem de indicações e sinalização suficientes. Há, por
falta de condições de segurança, edifícios ou partes deles inacessíveis.
O que faz falta é enorme. Por isso deve
ser prioridade, em detrimento dos esforços feitos para agradar a clientelas e à
"intermediação eleitoral". E em prejuízo do que "dá nas
vistas". Sabemos que os monumentos não votam. Mas as pedras podem um
dia cair sobre quem não cumpre os seus deveres.