segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Brasileiro é outra coisa

Foi isto a propósito da bica. A minha amiga gosta de ser bem tratada.
A empregada veio explicar que a bica pingada era melhor que o garoto, ficava mais saborosa. E esperou atentamente, a ver da anuência. A minha amiga provou e concordou em jeito confirmativo de olhos e de estalo de lábios. E a senhora foi-se embora sorridente, obsequiosa, meiga, brasileira, ainda a falar: “Se não estiver boa a gente que troca”. Daí o comentário da minha amiga: “Brasileiro é outra coisa”. Continuou:
- A diferença deles para nós, a maneira de ser é explicada pela imensidão e o clima quente. Ela diz, e espera para ver se ficou bem. O outro chega – referia-se ao dos domingos, noutro café mais amplo, de pastelaria – e despacha com ar sério, de quem sofre com a vida, sem bom dia nem boa tarde.
- Mas o nosso clima nem é dos piores...
- Não, eu há muito até digo que devíamos vender o sol ao grama. Mas temos que entrar em quarentena de dizer mal. Vem aí o Natal.
- É que não vale a pena dizer mal, já não resolve. Aliás, nunca resolveu.
- Não é só isso! Chateia-me! Tenho que parar de dizer mal.
Hoje não se lembrou de que “Nosso Senhor castiga”, causticada que ficou com as chocarreiras especulações que leu no “Caim” que camaradamente lhe emprestei. Mas logo continuou, embalada, esquecida do seu propósito amistoso:
- Aquele caso que o homem veio contar na Sic, à Rita Ferro! Muito grave! A mulher foi sozinha à consulta no hospital e escreveram que o seu caso era muito grave, para se dirigir a outro hospital. Nem ambulância, nem táxi, deixaram-na sair sozinha. Ainda teve tempo de escrever uma mensagem ao marido, a dizer para onde ia, com o papel do diagnóstico muito grave. Morreu a dar dois passos à saída do hospital. O marido contou. Pensa-se: isto não é possível! Isto é Lisboa! Nem sequer uma aldeia sem recursos. Que desculpa vão os médicos apresentar?
- Às vezes os jornalistas exageram!
- Pois! Mas não se tratou de jornalistas. Este foi um caso contado pelo marido da senhora à Rita Ferro. Um erro também dos jornalistas quando contam sem investigar, prova de baixo nível, miserável. Os jornalistas não têm que investigar se é verdade? Eles não têm vergonha de afirmar sem terem a certeza? Há quem os ponha em tribunal. Mas este foi o marido que contou. Mas isto, ver televisão é um desgaste, aparecem casos de injustiça graves, graves. Era uma mulher nova. Inacreditável! A Rita Ferro é boa apresentadora. O marido vai meter aquela gente em Tribunal.
- Para quê? A Justiça também está em quarentena. Ou mesmo em hibernação...
- Passar-se isto no século XXI, na capital! Há um jornalista do “Correio da Manhã” que se refere ao país como “O Sítio”. Escreve muito bem. Maior desprezo não há. É evidente que não se deve desprezar, o país tem coisas bonitas. Mas como? Umas amigas minhas de Aveiro vieram cá, andaram a visitar Lisboa. A Almirante Reis está um nojo, as lojas fechadas, velhas, sujas. Eu cheguei cá, era nova e gostava. Mas cheguei a ver lixo no chão assim! -
Fez um gesto com a mão, mostrando a altura do lixo.
- Mas eu sempre achei a Almirante Reis muito sombria. Talvez pelos prédios altos.
- Mas tinha lojas. Agora estão a cair.
- Lembro-me do encanto que foi para mim passar na Rua do Alecrim que Cesário referiu:
“E esses negros corcéis que a espuma veste
Sobem a trote a Rua do Alecrim
Velozes como a peste.”
- Dar passeios é em Lisboa.
-Isso é chauvinismo, à maneira do Eça: “O país está todo entre a Arcada e S. Bento! ”
- Eu gostei de Lisboa e fiquei. Tem carisma. E dizem que tem uma claridade diferente. Não sei se é verdade.
- Há muitos escritores que a amaram e a calcorrearam bem, como o Cardoso Pires. Mas não só esses. Uma espécie de “Saint-Germain- des-Prés” dos intelectuais franceses. Sem intelectualidade capaz, como também Eça referiu.
- O Chiado é que ficou bem, depois do incêndio. Mas levou tempo.
- Talvez os incêndios de agora nas políticas e na economia tenham um efeito futuro feliz. A bonança, depois da tempestade...
- Como pode acreditar nisso?É preciso escutar o Medina Carreira.
- De toda a maneira, já o Eça e os outros nos reduziam a “choldra” e ainda estamos. À espera do milagre. É o nosso fado.
- Está visto que não entramos em quarentena. Nem na questão da bica. Brasileiro é outra coisa.

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