sábado, 7 de novembro de 2009

“Caim” de José Saramago

Um livro de fantasia, a fantasia poderosa de um espírito atento ao mundo e aos homens, insubmisso perante muitos dos valores estabelecidos, afundado no desespero da impotência humana perante o problema do Mal e da Injustiça que regem o Mundo, mergulhado na orgia da sua própria imaginação e do seu próprio saber, na arte de uma linguagem escorreita, de verbo fácil e desinibido, de estilo tantas vezes chocarreiro, de um humor amplo de experiência humana fortalecida pela cultura livresca.
No fundo, a história de Caim, apoiada nos sinuosos enredos do Génesis, com citação onomástica e toponímica frequentes, nele colhidas, não traduz mais do que um hábil manejo do narrador, que, identificado com o protagonista da ficção, desmistifica esses enredos, em função de uma tese que pretende troçar de Deus como criador do Céu, da Terra e dos seres animados, um Deus criado pelo Homem, à sua imagem, pondo em causa os critérios de justiça e pertinência que movem o Senhor, segundo as tais histórias bíblicas forjadas por homens, em séculos recuados.
Deste modo Caim, o desesperado, por ter sido injustiçado, matará Abel – por não ter podido matar Deus - e à conta disso viverá exilado, mas salvaguardado, pelo mesmo Deus, afinal generoso – quem sabe se arrependido - com a marca protectora daquele na sua testa. Terá descendência, mas ao contrário de uma Bíblia omissa na revelação da sua vida e morte, Saramago entretém-se a transpor essa vida no tempo e no espaço, acompanhando-o no seu vaguear, em ziguezagueios anacrónicos que ora implicam o caso de Isaac, salvo por Caim, por atraso dos anjos destinados a evitar que Abraão consumasse esse sacrifício do filho, imposto por Deus, não tão injusto assim, porque o evitou, apenas desejando testar a obediência e devoção de Abraão; ora com a participação de Caim na confusão das línguas aquando da construção da Torre de Babel e sua destruição pelo Senhor indignado com a arrogância humana de atingir o Céu; ou nos sofrimentos e reconciliações de Job; ou na sua participação inesperada como passageiro da Arca de Noé, por imposição piedosa do mesmo Deus que, segundo a Bíblia, decidido a matar a humanidade pecadora por ele criada, só salvará do dilúvio o homem justo Noé e a sua família, mais um casal de animais de cada espécie terrena. Na ficção de Saramago, contudo, o rancor de Caim pelo Senhor que criou nele o remorso pelo fratricídio que cometera, fará que, embarcado na Arca, indiferente à bondade do Senhor para consigo, depois de conviver eroticamente com as várias mulheres dela, acabe por matar todos os passageiros da Arca, em gesto vingativo e desafiante ao poder de Deus, assim relativizado.
Um desafio que já Torga, hostil à ditadura de Salazar, utilizara no conto dos “Bichos” – “Vicente” – o corvo rebelde que, farto da humilhação suportada durante quarenta dias fechado na Barca, se lança espaço fora à procura de terra e de liberdade, obrigando o Criador, “para salvar a sua própria obra” a fechar, “melancolicamente, as comportas do céu”.
Uma mistificação afinal, não superior à da imaginação dos criadores das histórias em banda desenhada ou dos filmes de animação, férteis em proezas desmedidas de magia dos seus heróis, que vencem o tempo e as forças do homem real.
Mas a obra de Saramago é escrita num estilo seguro, de intenção filosófica, de alguém que, recusando Deus, como pura criação do Homem, sem admitir a eterna angústia humana perante o Incognoscível, se propõe troçar das histórias criadas por homens, numa irreprimível vontade de destruição do mito, pondo em causa isso que várias gerações deixaram registado, e onde tantos souberam mergulhar para traduzir beleza, sensibilidade e também humor, ou paralelismo com as vivências próprias.
É o caso do extraordinário soneto de Camões “O dia em que nasci moura e pereça”, transposto directamente das lamentações de Job, é o caso do exemplo infra, de Victor Hugo que, na “Légende des Siècles”, descreve, em terno quadro expressivamente romântico, o encontro em Belém da moabita Rute com Booz adormecido, a ela destinado. A aliteração, pelo predomínio dos sons f, fl, l da quadra citada, favorece a recriação do ambiente, numa paisagem nocturna de estio acariciante, com uma brisa tranquila envolvendo o casal predestinado:
“Booz ne savait point qu’une femme était là
Et Ruth ne savait point ce que Dieu voulait d’elle.
Un frais parfum sortait des touffes d’asphodèle
Les souffles de la nuit flottaient sur Galgala. »
E tantos mais exemplos a referenciar, na literatura de todos os tempos, no cinema, na arte, para contrapor, à amargura e violência da tese de Saramago, algumas amostras de arte e beleza, presentes nesse livro que se tornou “O Livro” da Humanidade, no extraordinário engenho das suas várias revelações, síntese de uma religião – credível ou não – que admite um só Deus Criador, contrariando outros mitos – igualmente belos e igualmente cruéis – mas poderosa e necessária a todos os que, com ou sem recursos de apoio às misérias humanas, aceitam no coração esse apoio único de uma fé salvadora.

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