Falámos sobre corrupção, matéria actual, matéria antiga, que nos encaminhou para o paralelismo que, na condição humana, feita de corpo e espírito, igualmente encontramos distribuída pela alma e pelo corpo, servindo de tema a tantos espíritos que sobre ela meditaram.
Lembrámos mesmo o “Auto da Alma” de Gil Vicente condenando os atavios da Alma vaidosa, ao espelho, por conta do devasso do Diabo que a seduz com enfeites pecaminosos, contrariado pelo discurso severo do Anjo: “Pondes terra sobre terra que esses ouros terra são”, condenação que Vieira glosará no seu “Sermão sobre a Quarta-feira de Cinzas”: “Pulvis es et in pulverem reverteris”.
Isso me levou a lembrar também o poema “Le Grand Testament” de François Villon que contém, entre outros passos, uma meditação - “No Ossário dos Inocentes” - tão plena de actualidade, lembrando que a morte tudo e todos nivela, devendo tal pensamento acudir às mentes dos que hoje em dia, esquecidos da relatividade que pende sobre o tempo e o mundo, tentam aforrar por vias indevidas, riquezas que são pó, que não levarão para a sepultura, salvo se desejarem enfiá-las e ser enfiados em pirâmides que vencerão o tempo, por algum tempo, apenas, da Eternidade.
François Villon teve um viver desregrado. Condenado à morte, desconhece-se se, de facto, foi enforcado. A sua “Balada dos Enforcados”, é uma obra-prima medieval de realismo, grito de angústia e apelo além-tumular aos homens – Frères humains - para que peçam a Deus que o absolva a si e aos companheiros de desgraça, “mais furados dos pássaros do que dedais de coser”.
Mas, vista a actualidade do excerto, eis uma tradução um pouco atamancada de “No Ossário dos Inocentes”, que vem, só parcialmente, ao encontro da nossa teoria da corrupção: enquanto a dos corpos contribui para recriar a vida, em cadeia alimentar sucessiva e útil, diria Lavoisier, a das almas alastra também, mas em rede de mais e mais corrupção, desatentas essas aos avisos dos filósofos ou dos poetas, que são, afinal, os avisos do senso comum:
Quando estas cabeças cotejo
Na confusão dos ossários
Umas de magistrados
Que o foram da Câmara dos Dinheiros,
Outras de carregadores,
Tanto valem uns como outros,
Porque entre bispos ou alumiadores
Dos carros dos senhores
Nenhuma diferença vejo.
E aquelas que se inclinavam
Perante outras, em suas vidas,
Estas, que reinavam,
Aquelas, receosas, submetidas,
Vejo-as agora igualmente adormecidas
Juntas em confuso amontoado,
Retiradas as senhorias.
Ninguém aí se reconhece, afinal,
Como ministro ou amanuense, no seu final.
Agora estão mortos, das suas almas
Deus tenha compaixão.
Quanto aos corpos, na confusão,
Estão apodrecidos,
Tenham eles sido damas ou senhores,
Docemente fortalecidos
Por cremes, caldos ou por arroz,
Os seus ossos a pó estão reduzidos,
Já indiferentes a debates ou a risos.
Absolvê-los é tarefa do doce Jesus.
Lembrámos mesmo o “Auto da Alma” de Gil Vicente condenando os atavios da Alma vaidosa, ao espelho, por conta do devasso do Diabo que a seduz com enfeites pecaminosos, contrariado pelo discurso severo do Anjo: “Pondes terra sobre terra que esses ouros terra são”, condenação que Vieira glosará no seu “Sermão sobre a Quarta-feira de Cinzas”: “Pulvis es et in pulverem reverteris”.
Isso me levou a lembrar também o poema “Le Grand Testament” de François Villon que contém, entre outros passos, uma meditação - “No Ossário dos Inocentes” - tão plena de actualidade, lembrando que a morte tudo e todos nivela, devendo tal pensamento acudir às mentes dos que hoje em dia, esquecidos da relatividade que pende sobre o tempo e o mundo, tentam aforrar por vias indevidas, riquezas que são pó, que não levarão para a sepultura, salvo se desejarem enfiá-las e ser enfiados em pirâmides que vencerão o tempo, por algum tempo, apenas, da Eternidade.
François Villon teve um viver desregrado. Condenado à morte, desconhece-se se, de facto, foi enforcado. A sua “Balada dos Enforcados”, é uma obra-prima medieval de realismo, grito de angústia e apelo além-tumular aos homens – Frères humains - para que peçam a Deus que o absolva a si e aos companheiros de desgraça, “mais furados dos pássaros do que dedais de coser”.
Mas, vista a actualidade do excerto, eis uma tradução um pouco atamancada de “No Ossário dos Inocentes”, que vem, só parcialmente, ao encontro da nossa teoria da corrupção: enquanto a dos corpos contribui para recriar a vida, em cadeia alimentar sucessiva e útil, diria Lavoisier, a das almas alastra também, mas em rede de mais e mais corrupção, desatentas essas aos avisos dos filósofos ou dos poetas, que são, afinal, os avisos do senso comum:
Quando estas cabeças cotejo
Na confusão dos ossários
Umas de magistrados
Que o foram da Câmara dos Dinheiros,
Outras de carregadores,
Tanto valem uns como outros,
Porque entre bispos ou alumiadores
Dos carros dos senhores
Nenhuma diferença vejo.
E aquelas que se inclinavam
Perante outras, em suas vidas,
Estas, que reinavam,
Aquelas, receosas, submetidas,
Vejo-as agora igualmente adormecidas
Juntas em confuso amontoado,
Retiradas as senhorias.
Ninguém aí se reconhece, afinal,
Como ministro ou amanuense, no seu final.
Agora estão mortos, das suas almas
Deus tenha compaixão.
Quanto aos corpos, na confusão,
Estão apodrecidos,
Tenham eles sido damas ou senhores,
Docemente fortalecidos
Por cremes, caldos ou por arroz,
Os seus ossos a pó estão reduzidos,
Já indiferentes a debates ou a risos.
Absolvê-los é tarefa do doce Jesus.
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