Estive ontem a tomar conta da minha mãe, que está agora em casa da minha irmã e se rebela de cada vez que esta tem que sair por um tempo mais prolongado. Não gosta de ficar só e chora como um Job abandonado pelo Senhor, apesar de tanto lhe louvar a glória. Quando cheguei, estava a dormir, acordou à hora indevida de “Questions pour un champion”, que me autorizou a ver, e a partir das quatro, fui a filha exemplar das exigências maternas a caminho dos 103 anos.
Comeu o seu yogurte e bolachas, mais tarde chupou a sua laranja, queixou-se do frio, quis ver a sua mala onde guarda algumas finanças em que gosta de mexer, não como o pai da Eugénie Grandet dominado pelo fascínio do ouro, mas com o saber ancestral da utilidade do mesmo, ainda que reduzido a papel europeu de cor e tamanho conforme o valor. Exigiu que eu partilhasse trocos que docilmente aceitei, inspirada no clima nacional de prevenção e receio do futuro sombrio, que faz que se extraia por vezes indevidamente da Banca - mas não foi o caso -, uma vez mais repisou no seu passado de trabalho, desde a infância nos montes a guardar as cabras e mais adiante a ceifar e a carregar molhos de pasto e a cozinhar para a casa farta de terras, de filhos, de gente trabalhando a rogo.
De vez em quando, nas suas evocações canta, embora a voz tenha perdido toda a suavidade das modulações de outrora, a “botar descante”, distinta das outras vozes. Outras vezes conta lenga-lengas que por falta de papel à mão não tenho gravado e bem me arrependo, porque são versos populares originais, que pode não voltar a recordar. Mas ontem eu tinha o papel à mão quando se saiu com a seguinte sentença:
Mulher barbuda
Cabra cornuda
E vaca “embiguda”
Seu dono ajuda.
Ainda não tinha ouvido esta, e fiquei chocada por tais ditames grosseiros, bem distantes do machismo lusitano habitual, e pelo contrário reveladores da sociedade matriarcal que certos cantares de amigo já revelavam e que Cesário tão bem descreve em "Provincianas" - a mulher fêmea determinada e forte, companheira de trabalho vigorosa e útil, tais como os animais referenciados:
Enquanto a ovelha arredonda
Vão tribos de sete filhos,
Por várzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadelas da monda.
De roda pulam borregos;
Enchem então as cardosas
As moças desses labregos,
Com altas botas barrosas
De se atirarem aos regos!
Ei-las que vêm às manadas,
Com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho, ao sustento,
Com fouces, sachos, enxadas.
Mas foram estas mulheres barbudas, de que os actores brasileiros ainda troçam, que originaram o império onde povos vários usam a mesma língua que elas usaram. Um bom exemplo este, a lembrar ao nosso governo, debilitado nas questões da má gerência masculina, que é tempo de experimentar a receita governativa da sentença que ontem ouvi à minha centenária mãe, ainda que desnecessários os aprestos da definição, por via da modernização embelezadora – a barba, os cornos, o umbigo excessivamente salientes.
O mal é que o povo de agora prefere as falácias daquele que elegeu, e o discurso criterioso da mulher que poderia ter eleito lhe passou ao largo, por muita garra que pareça ter.
Comeu o seu yogurte e bolachas, mais tarde chupou a sua laranja, queixou-se do frio, quis ver a sua mala onde guarda algumas finanças em que gosta de mexer, não como o pai da Eugénie Grandet dominado pelo fascínio do ouro, mas com o saber ancestral da utilidade do mesmo, ainda que reduzido a papel europeu de cor e tamanho conforme o valor. Exigiu que eu partilhasse trocos que docilmente aceitei, inspirada no clima nacional de prevenção e receio do futuro sombrio, que faz que se extraia por vezes indevidamente da Banca - mas não foi o caso -, uma vez mais repisou no seu passado de trabalho, desde a infância nos montes a guardar as cabras e mais adiante a ceifar e a carregar molhos de pasto e a cozinhar para a casa farta de terras, de filhos, de gente trabalhando a rogo.
De vez em quando, nas suas evocações canta, embora a voz tenha perdido toda a suavidade das modulações de outrora, a “botar descante”, distinta das outras vozes. Outras vezes conta lenga-lengas que por falta de papel à mão não tenho gravado e bem me arrependo, porque são versos populares originais, que pode não voltar a recordar. Mas ontem eu tinha o papel à mão quando se saiu com a seguinte sentença:
Mulher barbuda
Cabra cornuda
E vaca “embiguda”
Seu dono ajuda.
Ainda não tinha ouvido esta, e fiquei chocada por tais ditames grosseiros, bem distantes do machismo lusitano habitual, e pelo contrário reveladores da sociedade matriarcal que certos cantares de amigo já revelavam e que Cesário tão bem descreve em "Provincianas" - a mulher fêmea determinada e forte, companheira de trabalho vigorosa e útil, tais como os animais referenciados:
Enquanto a ovelha arredonda
Vão tribos de sete filhos,
Por várzeas que fazem onda,
Para as derregas dos milhos
E molhadelas da monda.
De roda pulam borregos;
Enchem então as cardosas
As moças desses labregos,
Com altas botas barrosas
De se atirarem aos regos!
Ei-las que vêm às manadas,
Com caras de sofrimento,
Nas grandes marchas forçadas!
Vêm ao trabalho, ao sustento,
Com fouces, sachos, enxadas.
Mas foram estas mulheres barbudas, de que os actores brasileiros ainda troçam, que originaram o império onde povos vários usam a mesma língua que elas usaram. Um bom exemplo este, a lembrar ao nosso governo, debilitado nas questões da má gerência masculina, que é tempo de experimentar a receita governativa da sentença que ontem ouvi à minha centenária mãe, ainda que desnecessários os aprestos da definição, por via da modernização embelezadora – a barba, os cornos, o umbigo excessivamente salientes.
O mal é que o povo de agora prefere as falácias daquele que elegeu, e o discurso criterioso da mulher que poderia ter eleito lhe passou ao largo, por muita garra que pareça ter.
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