quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A propósito da Mafalda

Deitaram no quintal um gato pequenino, inicialmente assustado e fugidio, mas agora já adaptado e brincalhão, e até dono da comida do cão e da das duas gatas, também caídas no quintal, em tempos já antigos. Pôs-se o problema do sexo: o avô diz que é gata, o pai da Mafalda diz que é gato. A Mafalda quatro anos e meio, decide, reivindicando já as suas competências, embora na condescendência com a falibilidade:
- Eu acho que é gata, mas se não for, é porque tu não tinhas razão nem eu.
Um exemplo seguido pelos nossos políticos, que também acham que é como eles dizem, mas não se ralam com a possibilidade de outras hipóteses, nem propõem alternativas, indiferentes à desgraça geral.
Um banco pequeno de madeira, pintado há muitos anos, serviu de assento, às netas mais velhas, tem servido aos netos mais novos. Há dias, o avô trepou a ele, que, já rachado e seguro com prego, caiu e se desfez. A Mafalda, triste pelo seu banco, mas sempre gentil com o avô, indiferente ao facto de o banco ter sido pintado há longos anos pela avó, logo comenta e desculpabiliza:
- Porque tu não sabias que o teu peso era demais para o banco. Por isso não tiveste culpa.
É o que acontece hoje com os que, sem culpa e por ignorância, confiaram nos bancos, embora por motivo oposto: não sabiam que o peso dos bancários era superior ao dos bancos onde confiaram as suas poupanças.
A Mafalda já consegue descrever-se, em complexa frase onde expõe os motivos da sua qualificação carinhosa:
- Vê lá: toda a gente me consegue pegar ao colo, porque eu sou pequenina.
Acho que o nosso engenheiro favorito também se passeia ternurentamente ao colo de todos, mas, contrariamente aos motivos da Mafalda, é porque somos nós os pequeninos.
A Mafalda conta, com gestos de braço e mão, o modo como se desenvencilhou de certo desaguizado com os coleguinhas pouco obedientes às reclamações dos seus direitos:
- Fiz assim, porque não se deve bater e depois fiz assim, porque não se deve empurrar.
E foi aqui que me lembrei do Dr. Mário Soares que nunca usou quaisquer justificações para os seus actos e que hoje, segundo se lê no Portugalclub, afirmou que “é moda falar mal de Portugal”. Parece que ele também já falou e o rei D. Carlos idem, mas agora ele só fala bem – o D. Carlos já não pode - porque participou na modificação de Portugal para melhor, e por isso me lembrei de transcrever um texto do meu livro “Cravos Roxos”, de que já falei, como, já velha, homenagem pela sua participação, igualmente com gestos de braço e mão, embora diferentes dos da minha netita:

“Admiração
Sempre admirei o Dr. Mário Soares desde que o conheci – e deu-se tal acidente por alturas da descolonização a vapor, que só diferiu da sua antónima colonização porque esta foi mais lenta – a remos – facto perfeitamente aceitável dada a falta de elementos progressistas, como o D. Mário Soares, a acicatarem o vapor.
Admirei, pois, a sua figura bonacheirona, e a impecabilidade da letra V com que figurava nos jornais e revistas mundanas empunhando o braço e abrindo os dedos indicador e maior, sem jamais se enganar, como eu já vi fazer a muitas pessoas, entre as quais um dos cinco amigos do filme de Lelouch “Aventura é aventura”, o que me chocou imenso, pois dobrava os dedos maior e anelar para baixo entre o mindinho e o indicador para cima, numa deprimente prova de ignorância do abecedário.
Ao mesmo tempo que formava o V impecável, primeira causa da minha admiração, também viajava muito, segunda causa da minha admiração, pois tais viagens só poderiam traduzir um índice económico, igualmente impecável, e esse aspecto estimula sempre bastante a admiração.
Consistiu a terceira causa a presteza com que o Dr. Mário Soares decidiu entregar os territórios portugueses aos terroristas, antes de se dispor a visitá-los – a eles, aos territórios, claro, porque com os terroristas mantinha naturais relações de afecto, bem evidentes aquando dos abraços apertados ao camarada Samora Machel em Lusaca e noutros sítios.
Quarta causa: A sua voz calma e monocórdica, medindo os argumentos sem dificuldade aparente, tanto para impor o regresso dos colonos, como para defender honradamente a entrega de Angola aos três movimentos negros disputadores e não só a um, como preconizavam os adeptos das esquerdas inicialmente e aceitaram todos os adeptos posteriormente, depois da escrupulosa hesitação salvaguardante das responsabilidades.
Quinta: O aspecto “raffiné” dos seus fatos de bom corte, esclarecedores das suas boas viagens – sempre pelo norte, jamais pelo sul – e originando uma figura bem arranjada e limpa e extremamente fotogénica em qualquer posição.
Finalmente, o facto de o Dr. Mário Soares se afirmar socialista mas com generosas tendências pluralistas causa a minha admiração ilimitada, a adicionar às demais causas citadas, rendendo-me ao seu poder subjugante, impresso airosamente há muito no seu impecável V.
Com efeito, dentro de um conceito de democracia pluralista, ou de pluralismo democrático, ele deverá admitir todas as opiniões, e dessa forma mal defenderá os seus pontos de vista. Felizmente não é isso o que a gente ouve, pois na mesa redonda com o Dr. Álvaro Cunhal ele defendeu esses pontos sagazmente na sua voz embaladora e não deixou de atacar da mesma maneira , apesar do pluralismo, os pontos do seu venerável opositor.
Depois da intentona de Novembro, é certo, abriu de novo os braços ao camarada Dr. Cunhal, por causa do pluralismo, mas na propaganda eleitoral não deixa de apontar os defeitos dos vários partidos, realçando as qualidades intrínsecas do seu.
Por estas razões é que me custa compreender o pluralismo dele e dos seus camaradas rivais, causa da minha admiração ilimitada, mas a minha politização é ainda muito recente, devo confessar, com poucas viagens e todas pelo sul.
Com o meu retorno ao norte, contudo, navegarei certamente em breve no mesmo conceito pluralista – único campo actual da nossa navegação, mas muito fértil – mais substancial aquele do que o conceito unitário. E do que a gente agora mais precisa, segundo se diz, é de substância, Deus no-la dê.
Mas se Deus não der, há sempre gente generosa por esse mundo. Não vamos morrer de fome assim...”

Com a interrupção reservada ao texto do Dr. Soares, não transcrevi a história contada pela Mafalda, que deve andar a inventá-las na sua escolinha:
“Era uma linda aldeia, onde viviam três rapazes. Um dia um saltou, apanhou o do meio, e os três foram de carro passear. Bem, eram seis: um, dois, três, quatro, cinco, seis”, disse, contando pelos dedos.
- “No lado esquerdo havia um carro que era deles. Entraram para lá e estavam felizes no seu carro. E finalmente viram uma grande tempestade e depois eles foram para outro sítio com o carro.”
Interrompeu-se:
- Ainda bem que tenho ténis, porque assim o gato não me arranha os pés.
Continuou:
- Eles foram para outra vida.
- Para onde? – quis eu saber, um tanto baralhada. Protestou, não admitindo interrupções:
- É preciso dizer sempre a mesma coisa!
O cansaço, talvez, fê-la precipitar o final:
- E depois, finalmente, chegaram a casa. E ficaram felizes para sempre. Vitória, vitória, acabou-se a história!
Afinal, também ela, como o Dr. Soares, já embarca na vitória, embora ainda não digital.
Assim cheguemos nós todos a casa, como os rapazes do carro da Mafalda, e fiquemos felizes para sempre.
O Dr. Sócrates, bom discípulo do Dr. Soares, dará a sua mãozinha, sem V digital expresso, que já passou esse tempo, mas cônscio da sua vitória, que os diversos partidos não vão boicotar, já o ouvi dizer a um dos representantes, apesar dos seus protestos, para ficarmos sabendo que eles se empenham. Sem fibra, educadamente, na desistência, achando, como a Mafalda, conquanto esta o faça a protestar, que “é preciso dizer sempre a mesma coisa”. Afinal, como outrora...

Um comentário:

AJS disse...

Excelente texto - Como sempre!!! Fartei-me de rir. Continua!