Os cães são bichos simpáticos,
dedicados ao dono, toda a gente sabe disso, inteligentes também, lê-se nos
livros, vê-se nos filmes, contam-se exemplos. A minha Zepa foi um exemplo,
numa inter-relação de carinho que a
fazia pôr-se no sítio onde os meus pés iam estar. Foi o que aconteceu um dia em
que eu estava a pôr roupa a secar, no estendal do quintal, e tive que lhe
dizer, em voz branda, sem nenhuma inflexão mais forte, Zepinha, estás-me a
estorvar, sem pensar que ela me entendesse. Mas a Zepa deu meia volta imediata,
embora eu nem a tivesse mandado embora, só lhe disse sem nenhuma inflexão
especial que me estava a estorvar, e foi pôr-se noutro lugar, à sombra de um
banco de jardim, velho como a casa de mais de cinquenta anos. Percebi a frase
que ouvi muitas vezes sobre a inteligência dos cães “Só lhes falta falar!”,
pois na verdade parece que percebem as falas, sobretudo se deles se fala, mas
eu nem me debrucei para lhe falar, à Zepa, estava a pendurar uma peça de roupa,
de braços erguidos para o arame, mais preocupada com a gestão do meu tempo.
Pouco tempo depois, a Zepa morreu, doze ou treze anos de vida livre e várias
ninhadas. Andavam a fazer uma piscina na casa atrás de nossa e o estrondo das
escavadoras fez a Zepa fugir, já arrastando-se, vivendo os seus últimos dias,
que julgávamos ainda distantes do fim. Dessa primeira vez, consegui encontrá-la
debaixo duma cadeira de uma esplanada onde ela ia connosco, faltei a uma aula, levei-a de volta a casa, deixei-a ali fechada. Mas no dia seguinte, a Zepa
desapareceu de novo, com a carga de dinamite daquele dia que a assustou. Foram
inúteis as buscas, dizem que os cães vão morrer longe da casa onde foram amados
e comprovei-o com a Zepa, na sua delicadeza discreta. Não assim com o Nick seu filho, que morreu anos
depois, a escutar os meus soluços agarrada a ele. Sempre jurei que não queria
bichos em casa, para não sofrer as suas dores e as suas mortes, mas afinal a
Zepa, que me foi largada um dia, às três da manhã, por uma cadela a quem
dávamos de comer, foi o início de gerações de cães e de martírios, até para os
distribuir. Mais tarde apareceram os gatos também, de uma gata vadia, e os meus
filhos contam da dedicação do Rosso, a substituir a gata, sua esposa, no
aconchego dos filhos. Histórias perdidas no tempo, guardadas na moldura que
lhes contém o retrato – a Zepa, o Nick novo, o Rosso, o Nick velho, fiéis
amigos, companheiros de folguedos dos
meus filhos.
Vem isto a propósito do Fox, que para
o mês que vem passa o seu décimo quarto aniversário. Foi um cão com as vacinas
todas enquanto na infância, pertencente então ao meu filho Luís, muito
responsável na altura, mas que o despachou para os pais assim que o Bruno
nasceu. Não teve mais vacinas, mas foi ao veterinário sempre que precisou. A
trela que trouxe só serviu nos primeiros tempos, quando ia com o meu marido
comprar o jornal. Mas a experiência de vida tornou-o hábil a livrar-se dos
carros, foi um cão livre de trela, tal como os anteriores. Adaptou-se bem a
este apartamento e de manhã põe-se em riste para ir lá fora, ladrando lá no rés
do chão quando quer entrar. Um cão esperto, com bastante mimo e dores nas
pernas que se vão mitigando com os comprimidos próprios. Ainda se entretém com
as e os camaradas do seu prazer, embora comedidamente, e o resultado disso é
que se esgota e por uns tempos come menos, o que me aflige, naturalmente. Assim
aconteceu há dias, diante do prato com frango e arroz que não se dispunha a
comer. Como o meu marido deixou em cima da mesa o courato restante de um pedaço
de presunto que a minha filha lhe trouxera das suas férias no Norte, resolvi
acrescentar esse courato ao arroz não com favas mas com frango e cebola e alho,
que acrescento ao granulado vitaminado, atirando-o para o prato.
À noite, estava eu a passar a louça
para a máquina por água, quando olhei para o prato do Fox. Estava totalmente
limpo, e fiquei satisfeita, naturalmente. Mas aos meus pés encontrei o courato,
ali largado e admirei-me, pois eu tinha-o posto no prato do Fox. Fiquei
intrigada e voltei-me para trás, talvez para o chamar e lhe fazer uma festa por
ter comido tudo, menos o courato, é claro, que, aliás, eu não pensara que
comesse. O Fox estava estendido sobre o respeitável ventre, as duas patas para
a frente, e olhava-me com um ar humano, que nunca lhe vira - um olhar
simultaneamente de desprezo, de dor, de orgulho ofendido, de profunda
frustração, se não indignação, por lhe ter posto courato no prato. E não é que
me senti envergonhada pela minha acção jamais praticada antes, de misturar
courato de porco na comida do Foz? Quando me voltei novamente, nem sei se para
lhe pedir desculpa, o Fox desaparecera. Dera-me a lição merecida com o seu ar
de reprovação e voltara altivamente para o seu tapete.
Já contei esta história várias vezes,
sempre na estranheza e no riso: eu nunca vira um ar tão enevoado e humano no
meu Fox. Hoje contei à minha irmã e o Fox escutava, prostrado, mas de olho
vivo, a compreender.
4 comentários:
Grande Fox. Depois eu é que sou o cínico... se fosse a ele teria feito um xi-xi em cima do coirato. E se fosse a ti, teria ensopado um quadrado de papel de cozinha com o produto desse grito e mandado emoldurar com os seguintes dizeres:
- Recordação por todos os vexames passados pelos meus animais de estimação... (incluem-se todas as auto-medicações com dexaval)
Não sabes que o Fox aderiu à religião islâmica e não come porco? O Fox está muiiiiiito à frente!
Paula disse.
Realmente, para complemento da vingança,não é que, ainda dois dias depois, ao chegar da rua por volta da meia noite, o Fox foi despejar a sua bexiga no sítio onde largara o courato?
Se calhar leu o meu comentário. Agora só lhe falta aprender a cantar.
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