sábado, 22 de maio de 2010

“Antes que acabe”

- Porque o drama do nosso tempo é que toda a gente tem assessores, montes de assessores. Agora parece que o que os gajos querem é gastar e gozar antes que acabe.
- Mas porque diz isso?
Uma coisa com que embirro é com a deselegância na expressão verbal, sobretudo quando estamos a falar de coisas graves e de pessoas que merecem a nossa deferência, mas a minha amiga nem por isso é sensível às subtilezas do meu espírito a respeito do calão ou de termos mais degradados, sobretudo quando toda ela se alarga nas novidades em primeira mão. Esta parece que a leu no Correio da Manhã. Em todo o caso, gostaria de ser mais esclarecida e contava com a minha ajuda, mas eu sou avessa às leituras pela manhã, ocupada que ando, como a Carochinha, a varrer papéis, sem, todavia jamais encontrar, como ela, a moedinha de cinco réis, por muito que me ache igualmente merecedora do prémio.
- Porquê?! Então não leu que o PR vai a Cabo Verde e leva catorze assessores? Os seis que costumavam ir nesses passeios, passaram a catorze?! Bruxelas critica, e depois eles têm a lata de se deslocar assim! Com mais do dobro dos assessores, numa viagem de milhões! Vão levar os amigos... A que propósito ir a Cabo Verde, o presidente de um paizeco com tantos milhões de dívidas? E se calhar ainda vai levar empresários, como é costume...
- Mas acha que os empresários também vão à borla?
- Porque não, se os empresários são como o Paulino que tem olho? Não vão lá fazer nada, como de costume, mas Cabo Verde dizem que tem praias e paisagens bem boas e até o ex-presidente Soares se arrependeu de não ter deixado aquilo para nós, em excepção de entrega aos seus naturais, que realmente não havia nenhum quando lá chegámos no tempo das naus e portanto parece que o ex-presidente concluiu, passada uma trintena de anos, ou até mais, que os naturais sempre fomos nós, que fomos primeiros...
- Bem sei, e o mesmo poderia dizer de S. Tomé e Príncipe, que, apesar de não ter sido referido pelo ex-presidente, perdido nas contas, ficou registado no “Equador” do Miguel de Sousa Tavares, com muita expressividade, valha-nos isso.
Mas a minha amiga estava possessa:
- Como raio é que um presidente que parece sério não se envergonha das suas viagens, quando estamos a desfazer-nos como nação?
- Sério ele? É igual aos outros. Eu até já tratei essa questão das nossas viagens pós-abril num texto de “Cravos Roxos”. É a nossa alma errante que nos leva a viajar, pode crer. Como dantes. Ora veja:

Georges, anda ver o meu país de viajantes...”
«Diz-se para aí / Que muito bem fazem eles em viajar, / Para poderem conhecer / Os sítios onde se irão divertir / Sempre que o governo o permitir / - E permite geralmente, / Generosamente. / Também viajam para espalhar / O nome de Portugal / Após a sua redução / Territorial, / Que o governo permitiu / Gloriosamente. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes...” / Viajam pelo mundo inteiro / - Especialmente o terceiro - / Por causa do petróleo / A importar, / E das pessoas em excesso / A exportar / Do reduzido território. / Também viajam pelo segundo / E pelo primeiro mundo / Procurando esclarecimentos / E empréstimos / E mercados / Recusados / Pelos povos / Incompreensivelmente poupados. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes”, / Infatigáveis itinerantes, / Não pelo mar propriamente, / Como antigamente, / Sujeitos a privações, / Mas de avião, / Transportando comodamente / Saudações / Aos povos que nos vão estender a mão / Segundo as nossas petições. / Levam séquito normalmente / Para causarem boa impressão / E granjearem civilizadamente / Amizade e cooperação. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes”, / Que completam a sua educação / À custa da nação / Submissa perante a imposição / De se granjear protecção, / Declinada, naturalmente, / E sempre amavelmente. / Mas entretanto, / Os nossos viajantes viajaram / Depois que o seu próprio território entregaram, / Sem terem querido conhecê-lo, / Nem amá-lo, / Nem reconhecê-lo. / Entretanto, / Os nossos viajantes passearam, / E pedincharam / Abrigo para aqueles que o tinham / Antes / E o perderam / Por causa dos viajantes / Amigos de viajar / Pelo ar / Comodamente / E não pelo mar / Como dantes, / Georges...»

Antes que acabe”, disse a minha amiga. Foi a grande lição de Abril, complementada pelo slogan: “Viaje agora e pague depois”. Mas os viajantes são uns, os pagadores são os outros. Nós.

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