domingo, 9 de maio de 2010

A crosta

Recebi por email excertos do texto de Eça de Queirós, escrito em 1871, no primeiro número d’ “As Farpas”, que, todavia, completei, segundo texto procurado na Internet:


«Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há príncipio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agitagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado - e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão! »

Eça era de facto muito pessimista, adepto do bota-abaixismo de que hoje se enferma também, sobretudo os velhos do Restelo de que é de bom tom falar, para escaparmos à analogia com o povo inerte ou o roedor de sardinhas – no seu tempo ainda não distribuídas às metades por pessoa, senão ele tinha-o dito - e emborcador de vinho que hoje tende a diminuir uma nesga, substituído por outras matérias de consumo mais moderno e potente, como convém, para continuarmos na via da desesperança que encurralou o jovem Eça aos vinte e seis anos e lhe ditou o estro criador, para os anos seguintes da sua criação.
Outras coisas há, no seu texto, desactualizadas, de que o voltarete é a mais arcaica e os casebres ignóbeis também vão sendo substituídos. Para todos os efeitos, o dinheiro das colónias, da emigração ou da União Europeia foram revitalizando a paisagem, mas a devoção insciente continua cada vez mais exuberante, como se prova actualmente com a visita papal extenuante que vai ter a ocasião de observar as marcas do nosso sofrimento devoto no genuflexório ambulante dos nossos peregrinos sem arrimo.
Noutras coisas evoluímos também bastante, e particularmente na exploração dos preços das casas, mais de venda do que de aluguer, que subiram em flecha, na permissividade garantida pelos governos à burguesia, de que eles fazem parte, numa política de construção abrutalhada, para lavagens de dinheiros, diz-se, os tais dinheiros provenientes de furto, droga, trapaça, o costume. E as velhas casas das Lisboas antigas vão aluindo de envelhecimento e corrosão, na inércia dos governos ou das câmaras municipais, a braços com as dívidas avolumadas de governos anteriores e dos seus próprios.
Dívida ao estrangeiro dos empréstimos, cobrança de impostos para pagar aquela, já era assim, e assim continua cada vez mais acirradamente. Mas fez-se obra e quer-se continuar a fazer, traçando os caminhos da nossa modernização e do enriquecimento vil da conveniência e da desonestidade.
O texto lá está a dizê-lo e muito mais. Somos os mesmos trapaceiros de então, com um PM a comandar e um PR a deixar andar, por conveniência própria, para não comprometer o seu futuro nem o da sua família.
Num país onde a família se vai esfacelando em violências de estarrecer, tais sentimentos presidenciais, de apego ao cargo por apego à família são de respeitar. Daí, o seu discurso vazio. Mas na seriedade da preocupação.
Como uma crosta sórdida, mal fechada, de vez em quando deixando escorrer o pus da pústula não curada, aqui estamos, inteiros e vurmosos, como Eça nos descreveu. Sem esperança.

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