terça-feira, 25 de maio de 2010

Doutor com reserva

Hoje, o sr. Casimiro Rodrigues enviou-me o seguinte email, do Dr. Verdasca, em resposta a alguma observação feita pelo sr. Casimiro ao seu amigo, estranhando o novel tratamento que passei a dar ao “capitão” Verdasca, que era como eu o conhecia, antes de passar a saber dos outros seus atributos – e mais o de autor de livros de pesquisa e análise, de muito interesse. Se passei a atribuir-lhe o distintivo de Doutor, fi-lo ao conhecer que, sendo como eu, licenciado, não tinha o direito de lhe recusar tal estatuto, a quem o fez igualmente comigo, por educação, suponho, já que esse distintivo de Dr. funciona entre nós, como o Dr. Verdasca bem explica e é sabido de toda a gente, para os licenciados. Em Coimbra, segundo dizia o sr. França Amado, bibliotecário do Instituto Francês da Faculdade de Letras de Coimbra, bastava usar-se gravata, mas segundo a minha própria experiência desses tempos, bastava usar capa e batina, por isso qualquer caloiro munido do traje era doutor, mesmo sem curso.
A mim, não me incomoda, os alunos chamam “setores” aos professores, a banalização do termo é por demais provada. Só incomoda quem não tem direito a ele, mas eu aconselho a gravata, mais barata que a capa e batina.
Eis o email do Dr. Verdasca:

“Caro Casimiro,
é hábito chamar Dr. ou Dra. a quem tem um curso superior, embora só seja VERDADEIRAMENTE DOUTORA ou DOUTOR quem defendeu TESE de DOUTORADO.

No meu caso, sou licenciado em Ciências Militares pela Academia Militar de Lisboa (curso superior, como os coroneis que você conhece), sou licenciado em Administração de Empresas pela Universidade Mackenzie de São Paulo (Curso superior), tenho o Curso de Língua e Cultura Francesas da Alliance Française de Lisboa, e Pós-graduação (acima de bacharel) em Administração.

Mas isso não importa, é só para sua informação. Se eu não tivesse esses títulos, NÃO aceitaria que me chamassem Dr., caso da Dra. Berta que também é licenciada, segundo suponho.

Abraço, JVerdasca”

Para provar ao sr. Casimiro Rodrigues que eu sou superior a esses distintivos sociais, envio-lhe um excerto de um livrinho – “Melodias do Passado” – que escrevi em tempos:

“...Na escola fazíamos rodas e dançávamos “Que lindo botão de rosa”, “Eu passei por uma terra estranha”, “Aquela menina / Que está no meio / Está na idade de se casar”, e outras cantigas. Mas no quintal da nossa casa brincávamos às casinhas, cemitérios e às escolas. Das folhas de castanheiro fabricávamos chinelos cosidos com agulhas de pinheiros e sentíamo-nos muito felizes com os nossos modelos de calçado que, contudo, duravam pouco pois os pontos rebentavam. Os cacos serviam de louça, os bugalhos de panelinhas, as pedras e tijolos de mesas e bancos, e nos regos apanhávamos flores para enfeitar a casa e erva para cozinhar para as nossas bonecas de trapos, que vestíamos garridamente com panos sobrados de roupas feitas pela menina Conceição, costureira na Lomba da Bouça, que, quando casou, passou a chamar-se senhora Conceição, mudança de estatuto que me causou muita estranheza então, como primeiro contacto com os escalonamentos sociais correspondentes às diferentes etapas da vida. Mas surpresa ainda maior me causaria o caso da menina Francelina, irmã do Américo, nosso companheiro de escola, que, como casou rica, passou ao estatuto de dona - Dona Francelina, claro indício das nossas linhagens medievais, com antecedentes romanos, viria a saber mais tarde. Mais surpreendente, contudo, foi o exemplo da menina Amarilis, rica por natureza, por ser filha do sr. Celestino, dono da loja de cima, a qual, quando casou, também abastadamente, duplicou os distintivos, passando a chamar-se senhora dona Amarilis, duplicado de que eu também viria a usufruir mais tarde, salvo quando são desconhecidos os meus méritos.”

Igualmente no texto “Minha Senhora, Excelentíssimo Senhor” de “Prosas Alegres e Não” colho um pequeno excerto – neste caso, todavia, ironizando a superioridade contida nas expressões referidas no título, quando aplicadas por um “superior” a um “inferior”, marcando as convenientes e altivas distâncias, através de uma fórmula de tratamento perfidamente requintada:
“Não se trata, de nenhuma maneira, de pretender que a grosseria venha impor-se nos costumes ... ainda mais. O “minha senhora” natural e simples não é para aqui chamado. Apenas aponto a afectação, a falsa elegância e a falsa superioridade.”

Para o sr. Casimiro Rodrigues, eu sou a D. Berta e acho graça, condiz com os costumes informais do seu Brasil de adopção. Para outros sou a Srª Berta e ignoro, sobretudo quando neles noto a intenção amesquinhante, denunciante de grosseria de carácter, quando não puramente de falha na educação. O Dr. Verdasca é, naturalmente, uma pessoa educada.

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