sexta-feira, 21 de maio de 2010

Candide

Um dos programas de opinião pública, creio que no canal 24, versou sobre o tema do optimismo. Houve mais senhoras participando do que cavalheiros, e algumas delas cheias de boa vontade de colaborar com o nosso PR no seu apelo à nossa confiança em nós mesmos para conseguirmos avançar no desenvolvimento do país, medida que tanto se impõe para nos levantarmos do chão. Explicaram muito femininamente que é uma questão de postura perante a vida e até que sempre orientaram os seus filhos nessa postura de confiança e crença neles e nos outros, mas sobretudo neles próprios, que isso dá personalidade e mesmo outra dimensão existencial além de vivencial a quem tenha sido alvo da confiança materna – e paterna, está visto, também, conquanto estas distinções de géneros gramaticais vão tendendo a esbater-se, mesmo nos adjectivos da espécie dos citados, pela polémica que gera a sua problemática, no actual contexto cultural português.
Ora, em conversa com a minha amiga, até lhe falei – aliás nem sequer foi a primeira vez – no Pangloss, que ensinou o seu discípulo Candide segundo a virtude - porque se trata duma virtude, senão as senhoras da opinião pública não falariam com tanta convicção e mesmo finca-pé de sabedoria da vida, lembrando o “experto peito” do “Velho do Restelo” que Camões criou para nós – segundo a virtude, repito, do optimismo.
É claro que do Voltaire só se poderia esperar uma troça desmanchada a quem defende essa tese – no seu tempo foi um sábio chamado Leibniz que quis provar que vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou no melhor possível dos mundos, ou no possível melhor dos mundos, nem sei bem qual a versão por que optou. A verdade é que todos eles – Candide, a sua amada Cunégonde, Pangloss, que nunca desistiu da sua teoria, nem sequer até prova em contrário, que muitas foram elas, as provas, pois todos eles sofreram as passas por esse mundo fora, autênticos horrores que achei sempre pornográficos, de tal modo foram escandalosos para a minha juvenilidade de leitora adolescente, do livro colhido numa qualquer biblioteca pública lourençomarquina. E por fim lá se foram amanhando com o jardim do cultivo de Pangloss, a Cunégonde já então velha, feia e estropeada das torturas que sofreu, mas mesmo assim muito amada, a provar que o Bem e o Mal se dão mãos, na Terra da nossa amargura e que por isso devemos ficar gratos ao Deus que, bom e poderoso, permite essas dualidades da nossa estranheza.
Ora a minha amiga não estava minimamente vocacionada para tais argumentos de generosa compreensão, e direi mesmo aceitação, e atirou-me logo, com uma energia de céptica altivez, o recorte de uma coluna de opinião, que sacou da mala, coluna chamada Bloco de Notas, assinada por João Vieira Pereira do Expresso, com o expressivo título “Querem reduzir o Défice? Comecem pela RTP”, que é um acervo de informações escandalosas sobre as dívidas, as vaidades e as perdas económicas da RTP, financiada pelo Estado, ou seja, pelo Zé Povo desacautelado e sempre desmantelado, a provar que mesmo que se queira ser optimista – apesar das senhoras boas educadoras nesse sentido – estas notícias arrasam as nossas convicções, a tal ponto que alguns de nós, perante estes casos e outros ainda mais graves que vivemos hoje em dia, podermos exclamar , como fez Camões, já no rasto do lamechas do Job: “O dia em que eu nasci “moura” e pereça...”
E senão, vejamos alguns factos pontuais, citados na crónica de Vieira Pereira, que passo a transcrever, na sua maior parte, por conta do nervosismo da minha amiga inconformada com estas coisas que nos limitam a auto-estima, excepto às senhoras acima referidas :
Espanta-me que a discussão em redor da redução da despesa se cinja às obras públicas. O Estado em Portugal desperdiça potes de dinheiro num sem-número de empresas e serviços. Dinheiro que é gerido ao sabor de um qualquer gestor colocado através do tradicional e pouco virtuoso sistema da cunha, na maior parte das vezes política.
O caso mais aberrante de todos é o da RTP. Respirem fundo e preparem-se para o escândalo que vou começar a descrever.
2000 milhões de euros foi quanto a RTP recebeu do Estado entre 2003 e 2009. Quase 300 milhões de euros por ano.
13,8 milhões de euros foi quanto a empresa perdeu no ano passado, apesar das chorudas transferências públicas.
592 milhões de euros é o capital negativo da RTP.
807,9 milhões de euros é o total do passivo bancário.
298 milhões de euros é quanto a empresa vai receber este ano entre indemnizações compensatórias, taxa de audiovisual e aumento de capital.
20 milhões de euros é quanto a RTP queria pagar pelos direitos de transmissão de 60 jogos de futebol do campeonato nacional, em guerra aberta com a TVI, um canal privado.
Este é apenas um exemplo de como se gasta dinheiro em nome de uma causa que ninguém entende. A RTP não faz serviço público, pelo menos a RTP1. A RTP é afinal financiada para concorrer com a SIC (que pertence ao mesmo grupo que o Expresso) e com a TVI. Só que essas estações ganham dinheiro e a RTP sorve dinheiro. Dinheiro dos impostos e da taxa de audiovisual. ...”

Foi por tudo isto que, tendo respirado fundo, a conselho do cronista, achámos que não havia razões para o optimismo e a confiança de que se falou na opinião pública do canal 24, sobretudo por mães educadoras que lá falaram, e na esteira do que disse também o nosso PR. É que os números apontados neste texto de Vieira Pereira são bastante inferiores aos números que se apontam hoje, da teia da nossa corrupção generalizada.
Estamos, pois, num crescendo de desastre económico eminente, pelo vulcão jamais extinto do nosso tresloucamento moral e largando para cima de todos as cinzas inflamadas da nossa mortalha.

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