sexta-feira, 21 de maio de 2010

Os apelos do conforto

22 de Fevereiro de 2010. A minha Mãe partiu o colo do fémur. Longa odisseia vivida numa recuperação que se julgava impossível, pela idade centenária. Mas o fisioterapeuta tem feito milagres.
21 de Maio, quase três meses depois: a minha Mãe percorreu o corredor - uns oito ou nove metros – hoje, sem se sentar, ela própria movendo o andarilho, numa pressa de fome, pois passava do meio dia, eram horas do almoço e aí vai, desejosa de se instalar no sofá, com a mesa posta e a minha irmã à volta, na eficiência de a bem servir. Uma rainha. Tudo agora trabalha bem nela, e as ideias vão-se aclarando, nas evocações, mesmo repetidas, mas que ouvimos sempre – sobretudo a minha irmã, na paciência e até no deslumbramento, de a ver mergulhar no seu passado de filha responsável – mais velha de três irmãs e um irmão, com mais quatro irmãos anteriores. Única da família que resta, e isso a faz chorar por já não ter pai nem mãe, nem irmãos a quem amar e isso nos indigna um pouco, ao lembrar-lhe a família posterior, e ao lembrar a nossa própria orfandade do nosso pai.
Gosta de falar no seu passado de moça casadoira, com muitos pretendentes – e cita as terras desses tais - Cedrim, Sejães, Bispeira, Ladário (mais renitente, esse, que o rapaz tinha muitas terras e de terras e gados estava ela farta), Cambarinho, Souto de Lafões, Carrazedo, um Cipriano, rapaz muito lindo de Lagoa, no alto da serra das Arcas, o seu Carregal. Ficou-se por Destriz, mas o meu Pai virara africano, condição sine qua non para ser aceite e, além disso, era lindo de morrer, com muita instrução, ganha em Macau, com vários prémios de melhor aluno, e com o “honesto estudo” que aliou ao seu engenho próprio, provado em concursos onde ganhou os dois primeiros rádios da nossa vida. Eu já o disse num livro de memórias, mas não me importo de relembrar, que o meu Pai ficou também como figura mágica que nos acompanha, não sei se no coração, mas numa saudade imperecível. São dele as seguintes três quadras aos cigarros Império:
À porta do Céu, Tibério / Pede a S. Pedro um lugar. / - “Fuma cigarros Império? / - diz-lhe o Santo – “Pode entrar”.
“Resume-se a vida assim / Para quem tem gosto e critério: / Deixar correr o marfim, / Fumar cigarros Império.”
“Que dos cigarros Império / Nenhum fumador se prive. / Porque cigarros Império / Quem os não fuma não vive.”
Era todo branquinho, o rádio que o meu Pai ganhou com elas, que me acompanhou longos anos, até que os solavancos de uma descolonização de trambolhões o fez abandonar, num esquecimento que pôs a vasta família na vanguarda das opções de retorno.
Mas retomando a actual lucidez da minha Mãe, a dada altura das suas evocações matrimoniais, saiu-se com a seguinte frase: “É como quem está a comprar uma ovelha!”
Tratava-se das manipulações das famílias para unir os jovens casadoiros, com olho no dote, nas terras respectivas: “É como quem está a comprar uma ovelha” e isso a aproximou, no meu espírito, dos orgulhos de uma Silvia, repudiando, por independência feminina, o namorado Dorante proposto na combinação dos respectivos pais, na peça de Marivaux “Le Jeu de l’Amour et du hasard”, em estratagema de troca de posição com a criada, que, por igual jogo de Dorante, de substituição pelo papel de criado, resultara segundo a combinação da autoridade dos pais.
Mas isso não se passou com a minha Mãe, ela própria moçoila independente, mas, chorando durante o resto da sua vida o não se ter despedido do seu santo paizinho quando partiu para África após o casamento por procuração.
Muito mais histórias recolhi ultimamente dela, mas finalizo com uma quadra que deve ser bicentenária, pois afirmou: "A minha mãe cantava isto!", e chorou, lembrando:
“Aveiro por ser Aveiro, / Por ser marinha de sal, / Não há terra como Aveiro / No Reino de Portugal!”
É que ouço Pedro Passos Coelho afirmar que se sente “confortável, que o PSD não é nenhum partido que apoie o governo”.
E a imagem de força, da minha Mãe correndo de andarilho para o seu almoço, que nos mereceu palmas e aplausos e referências à nova Rosa Mota, desvaneceu-se, suplantada por outras imagens de força maior, dos nossos actuais corredores para os banquetes pátrios, todos confortáveis, todos confortáveis.

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