- Então o que é que diz à passagem do 8º para o 10º, sem passar pelo estado intermédio do 9ª? - perguntou a minha amiga com os olhos faiscantes de malícia, a julgar que me apanhava em falso e que eu ainda não tinha pensado no assunto, presa que estou a uma vida sobrecarregada de curvas e contra-curvas, em torno de uma mãe pesada das exigências do seu mimo centenário.
- Chama-se a isso, - respondi eruditamente, recordada das mudanças de estado da matéria que aprendi creio que na Física do 2º ciclo liceal, - chama-se a isso sublimação, tal como a mudança do estado sólido ao gasoso, sem passar pelo estado líquido, ou viceversa. Fusão, vaporização, condensação, solidificação, e mais uns nomes que a gente decorava com gosto...
- Tudo menos sublimação no salto do 8º para o 10º, contrapôs a minha céptica amiga, que vagamente fala em estupedificação.
Dei-lhe razão, docilmente, que sou pessoa nada orgulhosa dos meus saberes que me chegaram da adolescência. Nem dos que me chegaram posteriormente, de resto, sempre mal colados e dum modo geral muito voláteis. Mas expliquei que o depuramento da ignorância pode apelidar-se também como um estado de sublimação, como grau zero para que tendemos, a continuarmos na via sumária da nossa educação actual.
E a minha amiga vá de continuar, refractária às minhas sublimes justificações:
- Se houver um prémio para a melhor anedota, esta ganha o primeiro prémio. É que a gente está a ouvir a ministra e não quer acreditar. Então, nesse caso, aqueles alunos do oitavo, que cumprem habitualmente, poderão fazer o mesmo, desde que tenham os quinze anos da tabela e em duas penadas alcançam o décimo, com uma preparaçãozita de lambedelas sumárias aos programa do nono para os exames da catapultação.
- Mas não se lembra das transformações no ensino e nas passagens aos anos seguintes, logo após o 25 de Abril? Isto não é novo. As passagens administrativas...
Tenho, aliás, um texto, no meu “Pedras de Sal”, contido em “Cravos Roxos” que vou transcrever, como prova de algumas dessas facetas sofridas pelo ensino:
“Uma Acta que não ficou assente”
«Às ... horas do dia... de Julho de 1974, reuniu-se o conselho de professores dos júris de exames, presidido pela directora da Escola... a fim de se decidirem as normas para os exames do ano lectivo em curso, emanadas da Secretaria Provincial (Província de Moçambique, ao tempo) de Educação.
Aberta a sessão, e após um intróito de apreço da directora agradecida pela excelente colaboração prestada pelos professores, modestamente sentados nas carteiras da sala, decretou-se que:
1º- Todos os alunos reprovados na 1ª e 2ª chamadas terão direito a uma 3ª.
2º- Por enquanto – dado que se deve atender à extrema mutabilidade das decisões emanadas superiormente – os alunos só têm direito a duas chamadas. Por tal motivo, os que já fizeram duas, por desconhecimento destas leis recentes, não terão terceira, atendendo a um critério de coerência que a Escola faz questão em salvaguardar.
Considerou-se em seguida a necessidade de simplificar as provas orais, de tal maneira que bastaria uma resposta correcta por parte do aluno para este alcançar o cobiçado 10 sem mais trabalhos.
Para ajudar o processo, um dos professores, com um espírito de colaboração devidamente apreciado pela directora, sugeriu um método pedagógico particularmente estimulante: ao pôr uma pergunta que implicasse o “sim” afirmativo, o professor deveria acompanhá-la com o movimento pendular de cabeça correspondente. Se a pergunta implicasse resposta negativa, o professor abanaria a cabeça asininamente. Ao aluno caberia, pois, apenas a tarefa de interprewtar inteligentemente os movimentos de cabeça do seu professor. Para ter garantida a passagem, bastar-lhe-ia interpretar um deles, o que corresponderia à tal resposta correcta salvadora. O aluno mais brioso tentaria diligentemente interpretar os dois movimentos e assim alcançaria um acréscimo de valores.
Deste modo, de acordo com o critério de valorização oral, decidiu-se que seria justo estendê-lo à escrita, onde os movimentos pendulares dos professoresz não teriam cabimento. Por isso, dispensar-se-ão das orais, os alunos que na escrita alcançarem a brilhante média de 6,5 valores, para não correrem o risco de fulminar com o seu brilho oral os professores desprevenidos.
Aos alunos de cotação inferior a 6,5 valores dar-se-lhes-á a oportunidade de tentarem uma segunda chamada para aumentarem de cotação.
Se continuarem a insistir, todavia, superiormente, dilatar-se-lhes-ão sem dúvida as oportunidades, pelo que os professores ficarão esperando atenciosamente a sua insistência ao longo das férias.
O critério de benevolência dispensadora das orais aplicar-se-á apenas aos alunos cujas notas ainda não foram afixadas. Aos outros dar-se-á, como se disse, a oportunidade de cilindrarem os examinadores com as suas orais esmagadoras e todas vitoriosas, dada a actual expansibilidade da letra V digital.
Nada mais se tratou nesta sessão, o que foi observado com profunda estranheza por alguns professores, habituados a sessões escolares de politização extraordinariamente impetuosas pró-Frelimo e contra o resto.
Tendo-se, pois, aquela encerrado em perfeita paz de maneiras, dela se lavrou a presente acta, assinada alegremente por mim e pela nossa compreensiva directora. 1974»
Do mesmo livro “Cravos Roxos”, Parte III – “Memórias dum professor do liceu” – extraio a seguinte passagem:
“Resultados péssimos dos exercícios escritos. Prefiro não ter de dar notas finais. Os alunos também não desejam as minhas notas, porque entretanto souberam segurar-se a outras bandas. No final do ano é um pedinchar de notas impressionante. E professores há que tudo concedem, numa busca ansiosa da simpatia estudantil, ou num receio estulto da sua antipatia.
País de mendigos e de trapaceiros, nem sequer nele destoa o espectáculo miserável de alunos estendendo a voz pedinchona para a dispensa de exame, ao professor a quem, provavelmente durante o ano desprezaram os ensinamentos, cientes da vantagem do método final!
Fico abismada com os três ou quatro professores que em cada um dos meus terceiros anos não conhecem senão as notas de 16, 17 ou 18.
Justificação final de uma professora perante o conselho de gestão: “Dou 16 aos alunos que nada sabem, 17 aos que sabem um pouco e 18 aos que ultrapassam esse pouco.”
As dispensas de exame chovem, naturalmente, nessas turmas, o que não sucede, aliás, com outras turmas do 3º ano, onde o critério de classificação foi mais equilibrado, Chego mesmo a cumprimentar, num arroubo de entusiasmo, a professora de Matemática de um 2º ano que reprovou escrupulosamente, sem receio das consequências sobre o seu físico ou a sua reputação.”
A minha amiga concordou que o caso do salto possível do 8º para o 10º não é inédito entre nós, no pós-abril revolucionário. E tristemente refere as centenas de escolas que vão agora fechar, como cereja por cima do bolo da nossa estulta política educativa, centrada não na valorização do cidadão, mas na obtenção do diploma valorizador para efeito de estatística comparativa:
- Em suma, não é preciso estudar, o que é preciso é diploma. Há gente sem diploma na mão. Parece muito mal.
- Chama-se a isso, - respondi eruditamente, recordada das mudanças de estado da matéria que aprendi creio que na Física do 2º ciclo liceal, - chama-se a isso sublimação, tal como a mudança do estado sólido ao gasoso, sem passar pelo estado líquido, ou viceversa. Fusão, vaporização, condensação, solidificação, e mais uns nomes que a gente decorava com gosto...
- Tudo menos sublimação no salto do 8º para o 10º, contrapôs a minha céptica amiga, que vagamente fala em estupedificação.
Dei-lhe razão, docilmente, que sou pessoa nada orgulhosa dos meus saberes que me chegaram da adolescência. Nem dos que me chegaram posteriormente, de resto, sempre mal colados e dum modo geral muito voláteis. Mas expliquei que o depuramento da ignorância pode apelidar-se também como um estado de sublimação, como grau zero para que tendemos, a continuarmos na via sumária da nossa educação actual.
E a minha amiga vá de continuar, refractária às minhas sublimes justificações:
- Se houver um prémio para a melhor anedota, esta ganha o primeiro prémio. É que a gente está a ouvir a ministra e não quer acreditar. Então, nesse caso, aqueles alunos do oitavo, que cumprem habitualmente, poderão fazer o mesmo, desde que tenham os quinze anos da tabela e em duas penadas alcançam o décimo, com uma preparaçãozita de lambedelas sumárias aos programa do nono para os exames da catapultação.
- Mas não se lembra das transformações no ensino e nas passagens aos anos seguintes, logo após o 25 de Abril? Isto não é novo. As passagens administrativas...
Tenho, aliás, um texto, no meu “Pedras de Sal”, contido em “Cravos Roxos” que vou transcrever, como prova de algumas dessas facetas sofridas pelo ensino:
“Uma Acta que não ficou assente”
«Às ... horas do dia... de Julho de 1974, reuniu-se o conselho de professores dos júris de exames, presidido pela directora da Escola... a fim de se decidirem as normas para os exames do ano lectivo em curso, emanadas da Secretaria Provincial (Província de Moçambique, ao tempo) de Educação.
Aberta a sessão, e após um intróito de apreço da directora agradecida pela excelente colaboração prestada pelos professores, modestamente sentados nas carteiras da sala, decretou-se que:
1º- Todos os alunos reprovados na 1ª e 2ª chamadas terão direito a uma 3ª.
2º- Por enquanto – dado que se deve atender à extrema mutabilidade das decisões emanadas superiormente – os alunos só têm direito a duas chamadas. Por tal motivo, os que já fizeram duas, por desconhecimento destas leis recentes, não terão terceira, atendendo a um critério de coerência que a Escola faz questão em salvaguardar.
Considerou-se em seguida a necessidade de simplificar as provas orais, de tal maneira que bastaria uma resposta correcta por parte do aluno para este alcançar o cobiçado 10 sem mais trabalhos.
Para ajudar o processo, um dos professores, com um espírito de colaboração devidamente apreciado pela directora, sugeriu um método pedagógico particularmente estimulante: ao pôr uma pergunta que implicasse o “sim” afirmativo, o professor deveria acompanhá-la com o movimento pendular de cabeça correspondente. Se a pergunta implicasse resposta negativa, o professor abanaria a cabeça asininamente. Ao aluno caberia, pois, apenas a tarefa de interprewtar inteligentemente os movimentos de cabeça do seu professor. Para ter garantida a passagem, bastar-lhe-ia interpretar um deles, o que corresponderia à tal resposta correcta salvadora. O aluno mais brioso tentaria diligentemente interpretar os dois movimentos e assim alcançaria um acréscimo de valores.
Deste modo, de acordo com o critério de valorização oral, decidiu-se que seria justo estendê-lo à escrita, onde os movimentos pendulares dos professoresz não teriam cabimento. Por isso, dispensar-se-ão das orais, os alunos que na escrita alcançarem a brilhante média de 6,5 valores, para não correrem o risco de fulminar com o seu brilho oral os professores desprevenidos.
Aos alunos de cotação inferior a 6,5 valores dar-se-lhes-á a oportunidade de tentarem uma segunda chamada para aumentarem de cotação.
Se continuarem a insistir, todavia, superiormente, dilatar-se-lhes-ão sem dúvida as oportunidades, pelo que os professores ficarão esperando atenciosamente a sua insistência ao longo das férias.
O critério de benevolência dispensadora das orais aplicar-se-á apenas aos alunos cujas notas ainda não foram afixadas. Aos outros dar-se-á, como se disse, a oportunidade de cilindrarem os examinadores com as suas orais esmagadoras e todas vitoriosas, dada a actual expansibilidade da letra V digital.
Nada mais se tratou nesta sessão, o que foi observado com profunda estranheza por alguns professores, habituados a sessões escolares de politização extraordinariamente impetuosas pró-Frelimo e contra o resto.
Tendo-se, pois, aquela encerrado em perfeita paz de maneiras, dela se lavrou a presente acta, assinada alegremente por mim e pela nossa compreensiva directora. 1974»
Do mesmo livro “Cravos Roxos”, Parte III – “Memórias dum professor do liceu” – extraio a seguinte passagem:
“Resultados péssimos dos exercícios escritos. Prefiro não ter de dar notas finais. Os alunos também não desejam as minhas notas, porque entretanto souberam segurar-se a outras bandas. No final do ano é um pedinchar de notas impressionante. E professores há que tudo concedem, numa busca ansiosa da simpatia estudantil, ou num receio estulto da sua antipatia.
País de mendigos e de trapaceiros, nem sequer nele destoa o espectáculo miserável de alunos estendendo a voz pedinchona para a dispensa de exame, ao professor a quem, provavelmente durante o ano desprezaram os ensinamentos, cientes da vantagem do método final!
Fico abismada com os três ou quatro professores que em cada um dos meus terceiros anos não conhecem senão as notas de 16, 17 ou 18.
Justificação final de uma professora perante o conselho de gestão: “Dou 16 aos alunos que nada sabem, 17 aos que sabem um pouco e 18 aos que ultrapassam esse pouco.”
As dispensas de exame chovem, naturalmente, nessas turmas, o que não sucede, aliás, com outras turmas do 3º ano, onde o critério de classificação foi mais equilibrado, Chego mesmo a cumprimentar, num arroubo de entusiasmo, a professora de Matemática de um 2º ano que reprovou escrupulosamente, sem receio das consequências sobre o seu físico ou a sua reputação.”
A minha amiga concordou que o caso do salto possível do 8º para o 10º não é inédito entre nós, no pós-abril revolucionário. E tristemente refere as centenas de escolas que vão agora fechar, como cereja por cima do bolo da nossa estulta política educativa, centrada não na valorização do cidadão, mas na obtenção do diploma valorizador para efeito de estatística comparativa:
- Em suma, não é preciso estudar, o que é preciso é diploma. Há gente sem diploma na mão. Parece muito mal.
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