sábado, 19 de junho de 2010

Encomium moriae (cont.3)

E a narrativa da Loucura prossegue, com a referência agora às suas origens míticas, que nada tiveram a ver com os deuses poeirentos e fora de moda, tal o Caos, Orcos, Saturno, Japeto. Não, o progenitor da Loucura foi bem outro:

Cap. VII- «Nasci de Pluto, genitor único dos homens e dos Deuses, sem desprimor para Homero, Hesíodo ou mesmo Júpiter. Um simples gesto seu, hoje como outrora, subverte o mundo sagrado e o mundo profano; é ele que regula, a seu bel’prazer, guerras, paz, governos, conselhos, tribunais, comícios, casamentos, tratados, alianças, leis, artes, prazer, trabalho... falha-me a respiração... todos os negócios públicos e privados dos mortais. Sem a sua ajuda, o povo inteiro das divindades poéticas, melhor dizendo, os próprios Deuses maiores não existiriam, ou, pelo menos, magra mesa teriam (por falta das libações nos sacrifícios). Aquele que irritou Pluto, Palas em pessoa o não salvaria; aquele que ele protege, pode fazer negaças ao próprio Júpiter dos trovões. Tal é meu pai e disso me gabo. Não me gerou do seu cérebro, como Júpiter a triste e feroz Palas, mas fez-me nascer da Juventude (Juventus latina, Hebe grega), a mais deliciosa de todas as ninfas e a mais alegre. Entre eles não houve lugar para o maçudo matrimónio, óptimo para produzir um ferreiro coxo como Vulcano, mas o convívio prazenteiro do Amor, como lhe chama o nosso Homero, o que é infinitamente mais aprazível. Não pensem peço-vos, no Pluto de Aristófanes, velho caquéctico que já nem vê; meu pai foi um Pluto ainda intacto, abrasado de juventude, e não somente por conta da sua juventude, mas do néctar que largamente emborcara no banquete dos Deuses.»

A Loucura, filha do deus da Riqueza, da própria riqueza, “ploutos” em grego. É bem possível esta descoberta de Erasmo, verdadeira para o seu tempo, verdadeira antes, desde os tempos do primeiro crime bíblico, verdadeira nos tempos que correm: com efeito é Ploutos “que regula, a seu bel’prazer guerras, paz, governos, conselhos, tribunais, comícios, casamentos, tratados, alianças, leis, artes, prazer, trabalho, todos os negócios públicos e privados dos mortais.»

Faltou, no apanhado erasmiano, a referência às consequências de tal orientação plutocrática sobre a estabilidade do homem que, insensatamente vai destruindo o seu próprio habitat, o seu planeta, a sua Terra. E, naturalmente, por arrastamento, a sua Lua, se não todos os mais mundos do sistema solar.

Trata, o capítulo seguinte, da referência ao lugar de nascimento da Loucura, “já que hoje a nobreza depende antes de tudo do lugar onde se soltaram os primeiros vagidos”, considerandum erasmiano de que, todavia, me permito discordar pelo menos em relação aos tempos gloriosos do nosso século, onde essa verdade do berço dourado está democraticamente superada:

Cap. VIII - «Nasci nas Ilhas Afortunadas (Canárias, para além das colunas de Hércules), onde as colheitas se fazem sem sementeiras nem trabalho. Trabalho, velhice e doença são aí desconhecidos... Nascendo em tais delícias, eu não saudei a vida com lágrimas, mas imediatamente sorri para a minha mãe. ... Fui amamentada por duas ninfas encantadoras: a Embriaguez, filha de Baco, e a Ignorância filha de Pã. ...»

Segue-se, numa alegoria de actualidade e universalidade incontestáveis, a referência às companheiras da Loucura, que no próprio leite colheu os sabores da vida de que se orgulha:

Cap. IX- «A que tem o sobrolho franzido é a Filáucia (o Amor-próprio). A que vedes sorrir com os olhos e aplaudir com as mãos, é a Colacia (a Lisonja). A que parece viver num meio sono é Leteia (o Esquecimento). A que se apoia sobre os cotovelos e cruza as mãos, é a Misoponia (a Preguiça). A que está coroada de rosas e ungida de perfumes, é Hedoneia (a Luxúria). Aquela cujos olhos divagam sem se fixar, é a Anoia (a Irreflexão). A que mostra uma carne e uma tez sãs, é Trifeia (a Moleza). E entre estas jovens mulheres, eis dois deuses: o da Boa Mesa e o do Sono Profundo. São esses os meus servos, que me ajudam fielmente a guardar o governo do Mundo e a reinar, até mesmo sobre os reis.»
(Cont.)

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