É altura de, no capítulo XVIII a Loucura se debruçar sobre os festins dos homens, cujos prazeres ela comanda, acrescentando aos repastos deliciosos que preenchem o ventre, os risos, as graças, a jovialidade que entretêm olhos, ouvidos e a alma, através dos toasts, das canções, das danças, das pantominas, meios criados pela Loucura para a felicidade do género humano, como forma de escapar “à tristeza e ao seu próximo parente, o aborrecimento”.
Mas, no capítulo XIX, disserta sobre a amizade, como sentimento que polariza as atenções de outros, considerando-a “não menos necessária que o ar, o calor ou a água; é tal o seu encanto que, retirá-la do meio dos homens seria furtar-lhes o sol”, os próprios filósofos a inscrevendo “entre os maiores bens”. E vá de justificar a parte que a Loucura se reserva, “popa e proa” de tal bem:
XIX- «Vejamos um pouco. Conivência, engano, cegueira, ilusão a respeito dos defeitos dos amigos, complacência na forma de tomar os mais salientes por qualidades e a admirá-los como tais, não é isso vizinho da loucura? Um beija a verruga da sua amante; outro sorve, deleitando-se, um pólipo no nariz da sua Agna querida; um pai diz, do seu filho estrábico, que ele tem olhares de revés. Não é isso verdadeira loucura?Digamo-lo, repitamo-lo, é mesmo ela que une os amigos e os conserva na união.»
E é assim para o comum dos mortais, dos quais nenhum é sem defeitos, sendo o melhor o que os tem menos grandes. Mas entre os sábios não há amizade que conte:
Mas, no capítulo XIX, disserta sobre a amizade, como sentimento que polariza as atenções de outros, considerando-a “não menos necessária que o ar, o calor ou a água; é tal o seu encanto que, retirá-la do meio dos homens seria furtar-lhes o sol”, os próprios filósofos a inscrevendo “entre os maiores bens”. E vá de justificar a parte que a Loucura se reserva, “popa e proa” de tal bem:
XIX- «Vejamos um pouco. Conivência, engano, cegueira, ilusão a respeito dos defeitos dos amigos, complacência na forma de tomar os mais salientes por qualidades e a admirá-los como tais, não é isso vizinho da loucura? Um beija a verruga da sua amante; outro sorve, deleitando-se, um pólipo no nariz da sua Agna querida; um pai diz, do seu filho estrábico, que ele tem olhares de revés. Não é isso verdadeira loucura?Digamo-lo, repitamo-lo, é mesmo ela que une os amigos e os conserva na união.»
E é assim para o comum dos mortais, dos quais nenhum é sem defeitos, sendo o melhor o que os tem menos grandes. Mas entre os sábios não há amizade que conte:
“Se, por vezes uma simpatia mútua reune estes espíritos austeros, ela fica instável, efémera, entre pessoas severas, excessivamente clarividentes, que notam os defeitos dos seus amigos com um olhar tão perfurante como o da águia ou da serpente de Epidauro. Para as suas próprias imperfeições, é verdade, eles têm a vista bem obscurecida, ignoram a sacola que lhes pende das costas. Assim, visto que nenhum homem é isento de grandes defeitos, visto que se tem que contar com as imensas diferenças de idade e de educação, com as quedas, os erros, os acidentes da vida mortal,” só loucura ou indulgente facilidade justificam tais excessos que, todavia, “tornam a vida agradável e estabelecem os laços na sociedade”.
E, no capítulo XX, é o casamento o alvo da análise da Loucura, sob a pena crítica, naturalmente conservadora, de Erasmo, com a sua visão centrada no seu século XVI, e segundo as fontes clássicas ou bíblicas do seu conhecimento:
XX- “O que digo da amizade aplica-se melhor ainda ao casamento, união contraída para toda a vida. Deuses imortais! Quantos divórcios e aventuras piores que o divórcio não multiplicariam a vida doméstica do homem e da mulher, se ela não tivesse por alimentos e por apoios: a complacência, a tagarelice, a fraqueza, a ilusão, a dissimulação, enfim, todos os meus satélites! Ah! Como se concluiriam poucos casamentos, se o esposo se informasse prudentemente das brincadeiras em que a virgenzinha de modos delicados e pudicos se entreteve muito antes das núpcias! E mais tarde, que contrato se poderia manter, se a conduta das mulheres não se furtasse à despreocupação e à estupidez dos maridos! Tudo isso se atribui à Loucura; é por ela que a mulher agrada ao seu marido, o marido à sua mulher, que o lar permanece em paz e que o laço conjugal não se desata. A gente ri-se do “cornudo”, do marido enganado; quantos nomes lhe chamam! Mas ele seca com os seus beijos as lágrimas do adultério. Feliz ilusão, não é assim? e que vale mais do que roer-se de ciúme e tudo levar para o trágico!»
Hoje como ontem, não há que ver! Ainda há conformismos, nos casamentos que se não desatam, que permanecem intactos - por amor, por interesse, por convenção, por medo. Mas é claro que a flexibilização das leis – e da moral – dilataram as possibilidades de fuga aos rigores e dificuldades originados, por vezes, pelo cansaço da habituação no convívio a dois, para além da liberalização trazida pela independência económica do “segundo sexo”. E os divórcios excedem hoje os próprios casamentos, transformados, na sua maioria, em “uniões de facto”, numa sociedade que arvora ruidosamente o estandarte da liberdade, numa aparência de honestidade contra a hipocrisia da convenção.
Não se põe a questão aqui ainda, dos casamentos unisex, que a “Loucura” de Erasmo não explicitou e outro Erasmo ainda não surgiu, que provavelmente criaria o seu inverso – talvez o “Bom-Senso”, talvez o "Bom-Gosto”, que gostos há para tudo e o progresso traz surpresas atrás de surpresas.
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