segunda-feira, 28 de junho de 2010

Encomium moriae (8) - Proezas humanas.

No final do capítulo XXII do “Elogio da Loucura”, dama Loucura reivindica para si própria, como sua inspiradora, todas as acções brilhantes de que o mundo é fértil.

Assim, a guerra ( cap. XXIII), onde se cometem mais proezas:
“Ora, o que haverá de mais louco do que travar este género de luta por não se sabe qual motivo, quando cada partido retira dela menos bem do que mal? Há homens que tombam; como as gentes de Mégara, não contam. Mas quando se defrontam exércitos carregados de armas, quando soa o canto rouco das trombetas, para que serviriam, digam-me, esses sábios esgotados pelo estudo, de sangue pobre e arrefecido, que não têm mais que a respiração? Neste caso tornam-se necessários homens fortes e troncudos, que reflictam pouco e se atirem para a frente. Preferir-se-ia um Demóstenes soldado que, dócil aos conselhos de Arquíloco, lançou fora o escudo para fugir, assim que avistou o inimigo?Era tão cobarde no combate quanto excelente tribuno. Dir-se-á que na guerra a inteligência desempenha um grande papel. No chefe, aceito; mas é uma inteligência de soldado, não a dum filósofo. A nobre guerra é feita por parasitas, proxenetas, ladrões, bandidos, campónios, imbecis, gente falida, em suma, pelo refugo da sociedade, e jamais pelos filósofos das vigílias nocturnas à luz da candeia.»

Quão longe figuram “as armas e os barões assinalados” com que o nobre – ou ingénuo - Camões se pôs a descrever os feitos de exaltação nacional, embora, é certo, dois condenados também fizessem parte da “companha” náutica do Gama, para, aliás, tirarem conclusões precipitadas sobre a existência de cristãos lá por Mombaça, iludidos toscamente pelas manobras de um Baco finório, trajado de falso deus a adorar o verdadeiro.
Não era tanto assim dantes, não eram todos bandidos os da “carne para canhão”, havia gente de muita classe a fazer a guerra mesmo sem ser nas chefias. E por isso o nosso Vieira a condenou, tal como o Velho do Restelo o fizera antes.
Mas Erasmo não falou em negócio, quando se refere à guerra, nem Camões – a não ser por espírito de oposição senil do seu “Velho”- nem Vieira, que a critica em crescendum dramático, como “monstro”, “tempestade terrestre”, “calamidade”, provocadora de uma absoluta e absurda insegurança.
De negócio não falaram, pelo menos com a acutilância posta hoje nas proezas belicosas das nações. O Velho do Restelo, sim, que tinha um “peito experto” e aponta a “vã cobiça” causadora de desgraça, mas já dissemos que o fez por um conservadorismo condenável.

Erasmo explica que a sabedoria é contrária à boa governação, o que me leva a concluir que os nossos governantes conhecem todos o seu livro.

O capítulo XXIV é pródigo em demonstrar, através de exemplos de ilustres que “a sabedoria prejudica o êxito” e que a sentença de Platão “Felizes as repúblicas de que os filósofos fossem os chefes, ou cujos chefes fossem filósofos!”, é bem ingénua, já que “Se consultardes a História, vereis pelo contrário, que o pior governo foi sempre o do homem com pretensões filosóficas ou literárias”.

E, no capítulo XXV explica como os sábios perturbam a ordem:

XXV:«Não se suportaria que essas gentes aparecessem em cargos públicos como burros com uma lira, se não se mostrassem desastrados em todos os actos da vida. Convidai um sábio para jantar, e ele é um desmancha-prazeres com o seu silêncio morno ou as suas dissertações enfadonhas. Convidai-o para dançar e direis que é um camelo a saracotear-se. Arrastai-o para o espectáculo, o seu rosto bastará para gelar o público que se diverte...
Ele aparece numa conversa, é como a chegada do lobo da fábula. Trata-se de concluir uma compra, um contrato... não é um homem mas um cepo. Ele não presta serviço a si próprio, nem à sua pátria, nem aos seus amigos, porque ignora tudo das coisas vulgares, e a opinião e os usos correntes lhe são estranhos. Esta separação total dos outros espíritos suscita contra ele o ódio. Tudo, com efeito entre os homens, não se faz segundo a Loucura, por loucos, entre loucos? Aquele que for contra o sentimento geral não tem senão que imitar Timon e ir para o deserto para aí se gozar solitariamente da sua sabedoria.
»

Já o disse, na sua écloga Basto, o nosso clarividente e viajado Sá de Miranda certamente conhecedor de Erasmo, e o próprio Camões o explicitou melhor nas “Oitavas ao desconcerto do Mundo”, através do megalómano Trasilau, “que na loucura só consiste o siso”.
Também é verdadeiro hoje.

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