A minha Mãe a cada passo reconstrói o seu passado. E eu gravo-o, não, de facto, para decifrar origens perdidas no pó dos tempos, que poderiam encalhar numa qualquer despropositada lenda mourisca ou mesmo hebraica, em homenagem ao meu tio Manuel que às vezes me lançava, na minha infância traquina, um desprestigiante “Tu és muito judia”, mas porque vivo actualmente em perpétuo deslumbramento, ante o despoletar de uma memória materna cada vez mais refinada, de par com uma saúde que recuperou nas várias estruturas fisiológicas, graças a um medicamento homeopático libertador, “Frutos e Fibras”, de que há muito deixou de precisar.
E o seu passado aí torna, nos nomes das pessoas, das terras, dos enredos. Passado de uma vasta família, de oito irmãos, a mãe de Paredes de Ribeiradio, dois tios-avós padres, mais outro padre de Paranho d’Arca irmão da mãe, a velha casa do Carregal cheia de livros desses padres cujo destino ela desconhece e lamenta. E fala no “lapão” existente em Arca - uma pedra d’Arca com quatro colunas, certamente uma anta que desconheço, embora conheça outras da zona de Lafões. Fala com voz cheia e saudosa nas terras dispersas de que proveio a família, Rebordinho, Castro, Espinho, Arca, Santo Adrião, Paredes, “tivemos terras no Pisco, em Destriz, d’além do rio Alfusqueira, no Carregal, era uma casa muito valente”, muitas das quais terras o pai vendeu. Fala nos casamentos das irmãs e chora. A tia Clara foi a Rosária da Feira que lhe arranjou o casamento, com um emigrante brasileiro que tinha uma amante no Brasil. “Eu não estava lá, estava em África. A Lisete não queria ir para Destriz, ia para o curral agarrar-se às vacas e chorar, queria ir para África.” E a minha mãe vá de chorar, com pena da irmã. “Ó mamã, mas a tia Lisete foi feliz, com os seus quatro filhos, ela costumava dizer que tinha uma família muito boa.” Mas a minha Mãe não se distrai, quem eu julgo que gostava de a levar para África era a minha Mãe, tão sua amiga, talvez por esta ser a mais nova.
E a dada altura surgem as frases provérbios que ouvia às velhas: “Moças e bois é um ano até dois”, “É casa a arder sem se ver fumo”, cuja explicação acompanha com as referências às suas experiências de infância:
No primeiro caso, trata-se do abuso das criadas, quando estão tempo demais nas casas, ou mesmo a possibilidade de engravidarem, se houver varões nas casas. E cita casos, o da rapariguita das Talhadas, o da tia Maria Corredoira... Quanto à justificação dos bois: “compram-se magros nas feiras e vendem-se passado um ou dois anos mais gordos e por bom preço.”
Na sequência das dificuldades que passavam, na casa farta, mas exigente de trabalho e remuneração, o provérbio “É casa a arder sem se ver fumo” e a explicação: oito filhos, gente de fora, se não trabalham têm que vender, não é só comprar, e assim o pai se foi desfazendo de terras mais distantes do Carregal.
Um provérbio bem adequado aos novos tempos, tempos de compra, de desperdício, de diversão, de consumismo desenfreados. A UE, cujos 25 anos da nossa adesão se comemoraram hoje, 12 de Junho, adesão convenientemente festejada em bonita festa e bonitos discursos de optimismo ibérico, a UE, repito, forneceu-nos dinheiro, muito dinheiro, que modernizou o país, mas que o conduziu ao desleixo, pela ignomínia de ordens superiores exigentes de suspensão nos trabalhos agrícolas, a pretexto de que não produzíamos como os outros países, com as medidas convencionais dos seus produtos adubados. Embora sem o gosto das nossas frutas, fertilizadas por um sol amável, e pelo trabalho de amor à terra. Tudo isso é história passada, ninguém apontou esses factores negativos da incúria nos discursos do optimismo.
E assim a casa vai ardendo, com os campos transformados em baldio, os barcos encalhados nas praias, pela redução imposta dos espaços de pesca.
Mas na TV5, o desempenho extraordinário dos actores de “Antigone” de Jean Anouilh. Um Creonte obrigado a cumprir as ordens cruéis que decretou, o seu drama de consciência moral, no conflito entre a piedade e o dever político, contra uma Antígona rebelde, a junção do caricato, nos gestos grotescos do soldado insensível, com o sublime das personagens defendendo as suas razões. Os que têm que morrer, morrerão, Antígona, Hémon, Eurídice. As razões de Estado irão continuar a impor-se, acima dos escrúpulos humanitários. A vida continua.
Uma peça clássica, em que Antígona representa a voz da resistência, de todas as resistências, podendo talvez servir de símbolo à época que estamos a viver, de resistências, todavia, por vezes sem grande nobreza.
Mas os cabelos grisalhos ou a magreza dos nossos governantes actuais indiciam graves conflitos interiores neste nosso tempo de casa a arder, sem se ver o fumo.
E o seu passado aí torna, nos nomes das pessoas, das terras, dos enredos. Passado de uma vasta família, de oito irmãos, a mãe de Paredes de Ribeiradio, dois tios-avós padres, mais outro padre de Paranho d’Arca irmão da mãe, a velha casa do Carregal cheia de livros desses padres cujo destino ela desconhece e lamenta. E fala no “lapão” existente em Arca - uma pedra d’Arca com quatro colunas, certamente uma anta que desconheço, embora conheça outras da zona de Lafões. Fala com voz cheia e saudosa nas terras dispersas de que proveio a família, Rebordinho, Castro, Espinho, Arca, Santo Adrião, Paredes, “tivemos terras no Pisco, em Destriz, d’além do rio Alfusqueira, no Carregal, era uma casa muito valente”, muitas das quais terras o pai vendeu. Fala nos casamentos das irmãs e chora. A tia Clara foi a Rosária da Feira que lhe arranjou o casamento, com um emigrante brasileiro que tinha uma amante no Brasil. “Eu não estava lá, estava em África. A Lisete não queria ir para Destriz, ia para o curral agarrar-se às vacas e chorar, queria ir para África.” E a minha mãe vá de chorar, com pena da irmã. “Ó mamã, mas a tia Lisete foi feliz, com os seus quatro filhos, ela costumava dizer que tinha uma família muito boa.” Mas a minha Mãe não se distrai, quem eu julgo que gostava de a levar para África era a minha Mãe, tão sua amiga, talvez por esta ser a mais nova.
E a dada altura surgem as frases provérbios que ouvia às velhas: “Moças e bois é um ano até dois”, “É casa a arder sem se ver fumo”, cuja explicação acompanha com as referências às suas experiências de infância:
No primeiro caso, trata-se do abuso das criadas, quando estão tempo demais nas casas, ou mesmo a possibilidade de engravidarem, se houver varões nas casas. E cita casos, o da rapariguita das Talhadas, o da tia Maria Corredoira... Quanto à justificação dos bois: “compram-se magros nas feiras e vendem-se passado um ou dois anos mais gordos e por bom preço.”
Na sequência das dificuldades que passavam, na casa farta, mas exigente de trabalho e remuneração, o provérbio “É casa a arder sem se ver fumo” e a explicação: oito filhos, gente de fora, se não trabalham têm que vender, não é só comprar, e assim o pai se foi desfazendo de terras mais distantes do Carregal.
Um provérbio bem adequado aos novos tempos, tempos de compra, de desperdício, de diversão, de consumismo desenfreados. A UE, cujos 25 anos da nossa adesão se comemoraram hoje, 12 de Junho, adesão convenientemente festejada em bonita festa e bonitos discursos de optimismo ibérico, a UE, repito, forneceu-nos dinheiro, muito dinheiro, que modernizou o país, mas que o conduziu ao desleixo, pela ignomínia de ordens superiores exigentes de suspensão nos trabalhos agrícolas, a pretexto de que não produzíamos como os outros países, com as medidas convencionais dos seus produtos adubados. Embora sem o gosto das nossas frutas, fertilizadas por um sol amável, e pelo trabalho de amor à terra. Tudo isso é história passada, ninguém apontou esses factores negativos da incúria nos discursos do optimismo.
E assim a casa vai ardendo, com os campos transformados em baldio, os barcos encalhados nas praias, pela redução imposta dos espaços de pesca.
Mas na TV5, o desempenho extraordinário dos actores de “Antigone” de Jean Anouilh. Um Creonte obrigado a cumprir as ordens cruéis que decretou, o seu drama de consciência moral, no conflito entre a piedade e o dever político, contra uma Antígona rebelde, a junção do caricato, nos gestos grotescos do soldado insensível, com o sublime das personagens defendendo as suas razões. Os que têm que morrer, morrerão, Antígona, Hémon, Eurídice. As razões de Estado irão continuar a impor-se, acima dos escrúpulos humanitários. A vida continua.
Uma peça clássica, em que Antígona representa a voz da resistência, de todas as resistências, podendo talvez servir de símbolo à época que estamos a viver, de resistências, todavia, por vezes sem grande nobreza.
Mas os cabelos grisalhos ou a magreza dos nossos governantes actuais indiciam graves conflitos interiores neste nosso tempo de casa a arder, sem se ver o fumo.
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