Era o meu Pai que lembrava uma homenagem prestada pelo povo português a João de Deus, nos finais da sua vida, em que este, à varanda da sua casa, improvisou os seguintes versos:
«Que vindes cá fazer, ó mocidade?
Despedir-vos de mim? Quanto vos devo!
Também levo de vós muita saudade.
Em chegando à outra vida, escrevo.»
Era uma alma, João de Deus, na singularidade dos seus versos gentis e suaves, ou do seu humor epigramático, ou na seriedade com que tentou ajudar uma nação de um pobre povo analfabeto a aprender a arte de ler e escrever por uma Cartilha que se tornou método nacional. Em 1888, ano da publicação d’ “Os Maias” de Eça de Queirós.
Mas os tais versos que citava meu Pai, estavam incompletos. Faltavam os seguintes, comprovativos de um carácter de modéstia e afecto:
«Estas honras, este culto,
Bem se podiam prestar
A homens de grande vulto.
Mas a mim, poeta inculto,
Espontâneo, popular,
É deveras singular!»
Não, a José Saramago jamais se poderiam atribuir gestos de bondade e modéstia assim. E todavia, ele sofreu pelo seu povo, que desejou, certamente, também, elevar culturalmente. Ao descrevê-lo na sua força anímica, na sua brutalidade, na sua revolta, nas expressões soezes do seu viver nas trevas. Figuras que vão perpassando na obra múltipla do escritor atento, a par das figuras de maior relevo social, a quem não poupa os sarcasmos da sua condenação angustiada, de um estilo desestruturado, segundo as normas clássicas, mas perfeitamente captável na leitura atenta.
E José Saramago morreu. E volto a citar o texto que em tempos sobre ele escrevi, numa evocação que me parece justa, de um espírito acutilante que admiro na sua obra escrita, desta forma retomando uma homenagem, já não ao homem vivo, mas ao espírito que viverá enquanto for viva a pátria da língua em que escreveu:
«JOSÉ SARAMAGO,
Prémio Nobel da Literatura, 1998:»
«A sua obra ficcional forma panorama amplo de originalidade, humor satírico, informação livresca, agudeza psicológica e crítica, imaginação amplificadora, universos alucinantes, conhecimento humano, traduzidos num discurso desconcertante, pela irregularidade da sua estrutura frásica com a ausência da pontuação clássica, técnica que exige do leitor uma atenção permanente e participante na descodificação dos registos linguísticos – do narrador ou das personagens. Como se este estilo “acumulativo” de registos, de Saramago fosse símbolo da nossa época mediática, ruidosa e veloz, em que as vozes chegam e se impõem na força da sua oralidade, sem tempo para apresentações, ou para respirar pausadamente, e simultaneamente permitindo a percepção e desmontagem dos comportamentos e temperamentos das personagens, juntamente com o riso sardónico do seu narrador. Dir-se-ia que, para além da vastidão de elementos culturais e de conceito que informam a complexidade da sua obra, esta deve a sua originalidade também à matéria-prima humana que nela se realiza através do discurso poderoso, na sua unidade estilhaçada em fragmentos semânticos a descobrir, bem longe da técnica do discurso semidirecto ou indirecto livre de Eça, que já no seu tempo constituíra original forma de expressão, sem nunca perder, todavia, o equilíbrio gramatical, nem a clareza, nem o destaque psicológico das personagens, com a ocultação do narrador. Mas nestes séculos XX e XXI, cada vez mais marcados pelo tecnicismo, pela especialização, pela variedade, pela transformação, não espantam tais características de uma escrita exigente da participação do leitor, progressivamente mais apto, não só em consequência da ambiência de registos a descodificar que desde a infância o envolvem, como ainda pelo desenvolvimento dos estudos linguísticos e semânticos que possibilitam uma análise mais esclarecida de cada escritor.»
Mas José Saramago morreu, e o mundo se vai desunhando, com mais ou menos parti pris em torno do Nobel das Letras de 1998.
As honras oficiais do País são como sempre são as honras oficiais nos países. Com as pessoas que estão lá para prestar o culto da oficialidade: com seriedade decente, com imponência prestigiante do país que não pode ignorar o seu Nobel, mau grado os desaguisados anteriores, com os amigos sinceros, com os que admiram o escritor.
Morreu José Saramago e os dados estão lançados. Para a sua posteridade assegurada.
«Que vindes cá fazer, ó mocidade?
Despedir-vos de mim? Quanto vos devo!
Também levo de vós muita saudade.
Em chegando à outra vida, escrevo.»
Era uma alma, João de Deus, na singularidade dos seus versos gentis e suaves, ou do seu humor epigramático, ou na seriedade com que tentou ajudar uma nação de um pobre povo analfabeto a aprender a arte de ler e escrever por uma Cartilha que se tornou método nacional. Em 1888, ano da publicação d’ “Os Maias” de Eça de Queirós.
Mas os tais versos que citava meu Pai, estavam incompletos. Faltavam os seguintes, comprovativos de um carácter de modéstia e afecto:
«Estas honras, este culto,
Bem se podiam prestar
A homens de grande vulto.
Mas a mim, poeta inculto,
Espontâneo, popular,
É deveras singular!»
Não, a José Saramago jamais se poderiam atribuir gestos de bondade e modéstia assim. E todavia, ele sofreu pelo seu povo, que desejou, certamente, também, elevar culturalmente. Ao descrevê-lo na sua força anímica, na sua brutalidade, na sua revolta, nas expressões soezes do seu viver nas trevas. Figuras que vão perpassando na obra múltipla do escritor atento, a par das figuras de maior relevo social, a quem não poupa os sarcasmos da sua condenação angustiada, de um estilo desestruturado, segundo as normas clássicas, mas perfeitamente captável na leitura atenta.
E José Saramago morreu. E volto a citar o texto que em tempos sobre ele escrevi, numa evocação que me parece justa, de um espírito acutilante que admiro na sua obra escrita, desta forma retomando uma homenagem, já não ao homem vivo, mas ao espírito que viverá enquanto for viva a pátria da língua em que escreveu:
«JOSÉ SARAMAGO,
Prémio Nobel da Literatura, 1998:»
«A sua obra ficcional forma panorama amplo de originalidade, humor satírico, informação livresca, agudeza psicológica e crítica, imaginação amplificadora, universos alucinantes, conhecimento humano, traduzidos num discurso desconcertante, pela irregularidade da sua estrutura frásica com a ausência da pontuação clássica, técnica que exige do leitor uma atenção permanente e participante na descodificação dos registos linguísticos – do narrador ou das personagens. Como se este estilo “acumulativo” de registos, de Saramago fosse símbolo da nossa época mediática, ruidosa e veloz, em que as vozes chegam e se impõem na força da sua oralidade, sem tempo para apresentações, ou para respirar pausadamente, e simultaneamente permitindo a percepção e desmontagem dos comportamentos e temperamentos das personagens, juntamente com o riso sardónico do seu narrador. Dir-se-ia que, para além da vastidão de elementos culturais e de conceito que informam a complexidade da sua obra, esta deve a sua originalidade também à matéria-prima humana que nela se realiza através do discurso poderoso, na sua unidade estilhaçada em fragmentos semânticos a descobrir, bem longe da técnica do discurso semidirecto ou indirecto livre de Eça, que já no seu tempo constituíra original forma de expressão, sem nunca perder, todavia, o equilíbrio gramatical, nem a clareza, nem o destaque psicológico das personagens, com a ocultação do narrador. Mas nestes séculos XX e XXI, cada vez mais marcados pelo tecnicismo, pela especialização, pela variedade, pela transformação, não espantam tais características de uma escrita exigente da participação do leitor, progressivamente mais apto, não só em consequência da ambiência de registos a descodificar que desde a infância o envolvem, como ainda pelo desenvolvimento dos estudos linguísticos e semânticos que possibilitam uma análise mais esclarecida de cada escritor.»
Mas José Saramago morreu, e o mundo se vai desunhando, com mais ou menos parti pris em torno do Nobel das Letras de 1998.
As honras oficiais do País são como sempre são as honras oficiais nos países. Com as pessoas que estão lá para prestar o culto da oficialidade: com seriedade decente, com imponência prestigiante do país que não pode ignorar o seu Nobel, mau grado os desaguisados anteriores, com os amigos sinceros, com os que admiram o escritor.
Morreu José Saramago e os dados estão lançados. Para a sua posteridade assegurada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário