Temos, seguidamente, a Loucura lançada em expressiva síntese em abono da sua inquestionável interferência no trato humano, bem sintomática do cepticismo erasmiano a respeito da pureza que rege os sentimentos dos homens, que só a Loucura mantém coesos, sem a qual , de resto, o mundo descambaria em enfadonha sensaboria:
XXI- «Vedes que sem mim, até agora, nenhuma sociedade tem atractivos, nenhuma ligação é duradoira. O povo não suportaria muito tempo o seu príncipe, o criado o seu dono, a criada a sua senhora, o estudante o seu preceptor, o amigo o seu amigo, a mulher o seu marido, o empregado o seu patrão, o companheiro o seu companheiro, o hóspede o seu hospedeiro, se não se mantivessem um ao outro numa relação de ilusão, se não houvesse entre eles embuste recíproco, lisonja, prudente conivência, enfim, a lenificante troca do mel da Loucura.
Isto parece-vos enorme. Vede algo mais forte ainda.»
E é assim que, no capítulo XXII, a Loucura eleva a Filáucia ao primeiro plano que faz que o homem possa amar os outros, amando-se a si próprio em primeiro lugar:
XXII - «... A Natureza, muitas vezes mais madrasta que mãe, semeou no espírito dos homens, por pouco inteligentes que sejam, o descontentamento de si e a admiração de outrem. Estas disposições ensombram a existência; ela perde nisso todas as suas vantagens, as suas graças e o seu encanto. Para que serve, com efeito, a beleza, presente supremo dos Imortais, se ela acaba por murchar? Para que serve a mocidade, se a deixam corromper-se por um aborrecimento senil? Em todos os teus actos, o primeiro princípio que deves observar é o decoro; tu não te comportarás para contigo como para com os outros, a não ser graças a esta feliz Filáucia, que me serve de irmã, já que sempre ela colabora comigo. Mas também como parecer com graça, encanto e êxito, se nos sentirmos descontentes connosco? ... É bem necessário que cada um se ame a si próprio e se aplauda a si primeiro para se fazer aplaudir pelos outros.
No fim de contas, se a felicidade consiste essencialmente em querer ser o que se é, a minha boa Filáucia facilita-o plenamente. Ela faz que ninguém fique descontente com o seu rosto, nem com o seu espírito, o seu nascimento, a sua posição, a sua educação, o seu país. ... »
Hoje é em auto-estima que se fala. Quem a não tiver está feito ao bife, expressão não usada pela minha amiga, mas por outras amigas que conheci, jovens conscientes dos seus encantos físicos, dos seus dons intelectuais, alguns dos quais me pareciam, naqueles tempos, mais de convicção própria, que cada um toma a que quer, como a água benta, do que por expressão “leal-verdadeira”, aquela com que o Malhadinhas do nosso Aquilino se refere à sua própria justiceira língua.
Mas se grande parte da nossa população lusitana enferma de “complexos” atávicos de inferioridade – para usar ainda uma expressão que Freud generalizou - entre nós também não deixamos de verificar a existência de perfeitos exemplares cultivadores do orgulho próprio, cientes de um ego e de um super-ego fora de série, que descamba em arrogância ruidosa e palavreira, de quem só em si pode confiar e confia. E assi nos governa, a nós, que não temos ego que preste, a não ser os alunos nas escolas, seres de muita filáucia e de pouca filosofia.
Mas hoje a selecção nacional passou à fase dos oitavos de final. A nossa Filáucia subiu uns pontos, com a Loucura a geri-la ou não, que as vitórias são como flores de lótus que criam amnésia, como fizeram aos nautas de Ulisses, lá na ilha dos Lotófagos.
E bem precisamos nós de esquecer os males do nosso descontentamento, tão específicos da nossa complexada ilha, já sem nautas que prestem.
XXI- «Vedes que sem mim, até agora, nenhuma sociedade tem atractivos, nenhuma ligação é duradoira. O povo não suportaria muito tempo o seu príncipe, o criado o seu dono, a criada a sua senhora, o estudante o seu preceptor, o amigo o seu amigo, a mulher o seu marido, o empregado o seu patrão, o companheiro o seu companheiro, o hóspede o seu hospedeiro, se não se mantivessem um ao outro numa relação de ilusão, se não houvesse entre eles embuste recíproco, lisonja, prudente conivência, enfim, a lenificante troca do mel da Loucura.
Isto parece-vos enorme. Vede algo mais forte ainda.»
E é assim que, no capítulo XXII, a Loucura eleva a Filáucia ao primeiro plano que faz que o homem possa amar os outros, amando-se a si próprio em primeiro lugar:
XXII - «... A Natureza, muitas vezes mais madrasta que mãe, semeou no espírito dos homens, por pouco inteligentes que sejam, o descontentamento de si e a admiração de outrem. Estas disposições ensombram a existência; ela perde nisso todas as suas vantagens, as suas graças e o seu encanto. Para que serve, com efeito, a beleza, presente supremo dos Imortais, se ela acaba por murchar? Para que serve a mocidade, se a deixam corromper-se por um aborrecimento senil? Em todos os teus actos, o primeiro princípio que deves observar é o decoro; tu não te comportarás para contigo como para com os outros, a não ser graças a esta feliz Filáucia, que me serve de irmã, já que sempre ela colabora comigo. Mas também como parecer com graça, encanto e êxito, se nos sentirmos descontentes connosco? ... É bem necessário que cada um se ame a si próprio e se aplauda a si primeiro para se fazer aplaudir pelos outros.
No fim de contas, se a felicidade consiste essencialmente em querer ser o que se é, a minha boa Filáucia facilita-o plenamente. Ela faz que ninguém fique descontente com o seu rosto, nem com o seu espírito, o seu nascimento, a sua posição, a sua educação, o seu país. ... »
Hoje é em auto-estima que se fala. Quem a não tiver está feito ao bife, expressão não usada pela minha amiga, mas por outras amigas que conheci, jovens conscientes dos seus encantos físicos, dos seus dons intelectuais, alguns dos quais me pareciam, naqueles tempos, mais de convicção própria, que cada um toma a que quer, como a água benta, do que por expressão “leal-verdadeira”, aquela com que o Malhadinhas do nosso Aquilino se refere à sua própria justiceira língua.
Mas se grande parte da nossa população lusitana enferma de “complexos” atávicos de inferioridade – para usar ainda uma expressão que Freud generalizou - entre nós também não deixamos de verificar a existência de perfeitos exemplares cultivadores do orgulho próprio, cientes de um ego e de um super-ego fora de série, que descamba em arrogância ruidosa e palavreira, de quem só em si pode confiar e confia. E assi nos governa, a nós, que não temos ego que preste, a não ser os alunos nas escolas, seres de muita filáucia e de pouca filosofia.
Mas hoje a selecção nacional passou à fase dos oitavos de final. A nossa Filáucia subiu uns pontos, com a Loucura a geri-la ou não, que as vitórias são como flores de lótus que criam amnésia, como fizeram aos nautas de Ulisses, lá na ilha dos Lotófagos.
E bem precisamos nós de esquecer os males do nosso descontentamento, tão específicos da nossa complexada ilha, já sem nautas que prestem.
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