sexta-feira, 4 de junho de 2010

A pluma de Alegre

«Letra para um hino – por Manuel Alegre

É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre. »


Manuel Alegre apresentou todas estas possibilidades, bem boas, creio que num tempo em que lutava por elas, o que lhe transmitiu uma aparência grave e uma voz triste de pensador altruísta, que partilhava os problemas do povo, porque isso fazia parte da doutrina que ele muito amou juntamente com o pão, e que pôs em prática, assim que pôde, para a sua concretização.
Agora as possibilidades – no que toca a si próprio, pelo menos - são um facto real, o amor e o pão sobram-lhe, vai a caminho da presidência do seu país, provando que foi, de facto, possível viver de outro modo, pois soube bem transformar a sua mão - com a sua pluma - em arma, provavelmente em riste, para maior eficácia.
O certo é que o povo ama a sua pluma, o povo lhe dará, pois, o pão que ele pediu para o povo. Mas creio que não se lhe dará doravante que o povo murche ou finja que vive, que a presidência do país é um lugar de fachada e não propriamente de decisão, excepto em casos específicos, que possam ferir os brios dos presidentes.
E foi assim que Alegre conquistou, olhando os astros, novos horizontes, com a obrigação política actual de “dar a cara nesta hora para enfrentar sem subterfúgios a dura realidade”, como ele escreveu algures.
Referia-se, na questão da realidade dura de agora, às penalizações que vão incidir sobre os portugueses, como meios de austeridade impostos pelo governo para combater a crise, que ele acha de três dimensões, – “a financeira global”, “ a europeia” e “a imediata nacional”, fazendo a sua análise baseado em fontes. Mas ele não está ali para exercer oposição, embora, como conhecedor da alma lusa, afirme que “os portugueses não estão disponíveis para viver sem esperança”, frase que se aproxima expressivamente das frases do seu hino de possibilidades, onde nos exortava a vivermos de pé. Parece que dantes vivíamos de rastos, e acho que não se referia apenas às tropas de Nambuangongo.
Mas agora, pese embora a existência de bastantes dos nossos sempre em pé, também há casos pontuais a viverem de rastos, apesar da exortação contida no seu poema e não sei se Manuel Alegre se irá importar mais com isso, pois, como já disse e repito - mesmo sem ser da forma tautológica da sua poesia melancolicamente ambiciosa, por tradição fadista - o seu lugar como presidente será apenas de fachada, com cortes de fitas e passeios populares de auscultação, no que toca a realizações em prol da grei. Pelo menos fomos habituados a isso, são coisas que fazem parte dos nossos costumes
Quanto a andar sem olhar para o chão, mais uma das possibilidades contidas no seu hino, não aconselho, pois já tenho malhado, quando me descuido, no empedrado manhoso da nossa calçada. Mas foi porque me deixei murchar. Há sempre quem possa olhar para o ar, ou para os astros de Alegre, mesmo na nossa calçada de lombas e covas, livre de embaraços e a gritar não. Fazendo greves.

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