Porque vivemos numa época de sobressalto, provindo talvez daqueles adeptos de uma sociedade dirigida em função de si-próprios, desprezadas as normas da decência, época de loucura, gerada no desrespeito pelo ser humano, no atropelo sem sentido de todas aquelas noções que dão ordem e coesão a uma sociedade formada por seres aparentemente racionais, lembrei um velho livro que já no século XVI se mostrava bem pessimista a respeito do Homem, que os humanistas desejavam talhar segundo os moldes da elegância moral e espiritual.
Foi Erasmo de Rotterdam que, em casa do seu amigo, dez anos mais novo do que ele, Thomas Morus, autor da “Utopia” – para uma sociedade bem dirigida – escreveu, a pedido deste, em poucos dias, “O Elogio da Loucura”, que a ele dedica. “É uma obra singular, onde existe mais humor do que espírito, e mais erudição do que graça”, segundo Pierre de Nolhac que a traduz para francês, donde irei extraindo alguns excertos.
“É a Loucura que fala”:
... III - “Ponhamos de parte os sábios, que taxam de insanidade e de impertinência aquele que faz o seu próprio elogio. Se isso é ser louco, convém-me às mil maravilhas. O que haverá de melhor para a Loucura ser ela-própria a propalar a sua glória e a cantar-se a si-própria! Quem me descreveria com mais veracidade? Que eu saiba, não há ninguém que me conheça melhor do que eu. Creio, aliás, mostrar assim mais modéstia que um douto ou um grande senhor, que, por pudor perverso, suborna em seu proveito a lisonja de um retórico ou as invenções dum poeta, e que lhe paga para ouvir dele louvores, isto é, puras mentiras. Todavia, a nossa púdica personagem pavoneia-se, ergue a crista, enquanto impudentes aduladores comparam aos deuses a sua nulidade, propõem-no, considerando o contrário, como um modelo acabado de todas as virtudes, enfeitam esta gralha de plumas emprestadas, embranquecem este Etíope e apresentam esta mosca como um elefante. No fim de contas, utilizando mais um velho provérbio, declaro haver razão no louvor próprio quando não se acha ninguém mais para o fazer.
E eis que me espanto com a ingratidão dos homens, ou antes, da sua indiferença! Todos me fazem de bom grado a corte, todos há muitos séculos, gozam os meus benefícios, e nenhum testemunhou o seu reconhecimento celebrando a Loucura, quando se viu gente perder o seu sono em honra de tiranos como Busiris e Falaris, da febre quartã, das moscas, da calvície e de muitos outros flagelos. Ouvireis de mim um improviso não preparado, por isso mais sincero.”
V – “Não tenho necessidade de vo-lo dizer; revelo-me, como se diz, de fronte descoberta e olhos nos olhos, e se alguém quisesse tomar-me por Minerva ou pela Sabedoria, eu desenganá-lo-ia sem falar, com um único olhar, o espelho da alma menos mentiroso. Não uso pinturas, não simulo no rosto o que não sinto no coração. Em todo o lado me assemelho ao que sou; não tomo o disfarce daqueles que têm que desempenhar um papel de sensatez, e se passeiam como macacos sob a púrpura e burros sob uma pele de leão. Que eles se enfarpelem como quiserem, a orelha cresce e trai Midas...”
(Continua)
Foi Erasmo de Rotterdam que, em casa do seu amigo, dez anos mais novo do que ele, Thomas Morus, autor da “Utopia” – para uma sociedade bem dirigida – escreveu, a pedido deste, em poucos dias, “O Elogio da Loucura”, que a ele dedica. “É uma obra singular, onde existe mais humor do que espírito, e mais erudição do que graça”, segundo Pierre de Nolhac que a traduz para francês, donde irei extraindo alguns excertos.
“É a Loucura que fala”:
... III - “Ponhamos de parte os sábios, que taxam de insanidade e de impertinência aquele que faz o seu próprio elogio. Se isso é ser louco, convém-me às mil maravilhas. O que haverá de melhor para a Loucura ser ela-própria a propalar a sua glória e a cantar-se a si-própria! Quem me descreveria com mais veracidade? Que eu saiba, não há ninguém que me conheça melhor do que eu. Creio, aliás, mostrar assim mais modéstia que um douto ou um grande senhor, que, por pudor perverso, suborna em seu proveito a lisonja de um retórico ou as invenções dum poeta, e que lhe paga para ouvir dele louvores, isto é, puras mentiras. Todavia, a nossa púdica personagem pavoneia-se, ergue a crista, enquanto impudentes aduladores comparam aos deuses a sua nulidade, propõem-no, considerando o contrário, como um modelo acabado de todas as virtudes, enfeitam esta gralha de plumas emprestadas, embranquecem este Etíope e apresentam esta mosca como um elefante. No fim de contas, utilizando mais um velho provérbio, declaro haver razão no louvor próprio quando não se acha ninguém mais para o fazer.
E eis que me espanto com a ingratidão dos homens, ou antes, da sua indiferença! Todos me fazem de bom grado a corte, todos há muitos séculos, gozam os meus benefícios, e nenhum testemunhou o seu reconhecimento celebrando a Loucura, quando se viu gente perder o seu sono em honra de tiranos como Busiris e Falaris, da febre quartã, das moscas, da calvície e de muitos outros flagelos. Ouvireis de mim um improviso não preparado, por isso mais sincero.”
V – “Não tenho necessidade de vo-lo dizer; revelo-me, como se diz, de fronte descoberta e olhos nos olhos, e se alguém quisesse tomar-me por Minerva ou pela Sabedoria, eu desenganá-lo-ia sem falar, com um único olhar, o espelho da alma menos mentiroso. Não uso pinturas, não simulo no rosto o que não sinto no coração. Em todo o lado me assemelho ao que sou; não tomo o disfarce daqueles que têm que desempenhar um papel de sensatez, e se passeiam como macacos sob a púrpura e burros sob uma pele de leão. Que eles se enfarpelem como quiserem, a orelha cresce e trai Midas...”
(Continua)
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