«Na Ilíada não se come peixe», um
engraçado artigo de Pedro Bidarra, encimado com o trocadilho “Coisas bidarras”,
indicador do espírito que a ele preside, de crítica e de tolerância, na
aceitação do espírito ocidental, identificado com o da cidade, de bem-estar epicurista,
onde o peixe é prato de requinte, contrastando com o da tenda, no seu
significado de primitivismo raivoso, devorador de carne, como aquele a que regressam
os islamitas hoje, assaltando a “cidade”, em retaliação extremista pela vida de
liberdade prazerosa ocidental, contrária à sua doutrinação de rigor
fundamentalista, que pretende impor-se no mundo, não como expressão de qualquer
filosofia estóica, mas por mera bestialidade assustadora, que o mundo ocidental
vai favorecendo, deixando-se invadir altruisticamente pelas hordas sucessivas,
talvez provenientes do terror que se vive nos países de origem, talvez por
ambição de mudança para um mundo mais afortunado e livre, mas indiscutivelmente
perigosas para a paz, pois que nelas se infiltram esses espécimes aterrorizadores
dos fanatismos embrutecedores. O espírito da cidade, contrário ao da tenda, da tenda
onde Aquiles amuou durante dez anos, por ultraje recebido do seu chefe
Agamémnon que lhe usurpou a escrava Briseida, o das mais tendas estabelecidas
em torno de Tróia por esse amuo eterno a que a morte de Pátroclo pôs fim, com o
despertar de Aquiles para a vingança sobre o comedido e responsável Heitor, na
carnificina que se seguiria, com a destruição da cidade troiana, do bem-estar e
da paz.
A história repete-se, sempre se repetiu. Sem o espírito
épico desses tempos de luta corpo a corpo. Agora a guerra é perfeitamente
traiçoeira, de fabrico proveniente do progresso, quer se trate da bomba
inesperada, quer dos rostos escondidos bem armados no seu ódio idiota e lorpa,
quer o que provém da ambição dominadora já não só lorpa por que bem armadilhada
de progresso e indústria.
Mas as cidades reconstroem-se, não há dúvida. A
história repete-se. Tirando a de Troia que poderá ficar no indefinido do mito. A
natureza é que poderá não estar pelos ajustes, no seu contributo para o
arrasamento da cidade e dos cidadãos.
Na Ilíada não se come peixe
O
primeiro livro da nossa literatura é sobre o cerco da cidade. No fim a cidade
perde. Troia acaba queimada e saqueada, as suas mulheres violadas, levadas como
escravas, as crianças e os seus pais mortos.
Os
gregos que cercaram e saquearam Troia não eram os gregos que aprendemos a
admirar - os da filosofia, da democracia, da matemática e da geometria. Esses,
os que inventaram o nosso pensamento, só apareceriam passados mais de mil anos.
Os gregos que cercaram Troia eram bandos de guerreiros e facínoras cujos antepassados
tinham chegado a cavalo do Norte à procura do seu lugar; era gente que ainda
não tinha palácios nem estátuas, só armas e rebanhos.
Os
gregos clássicos, que consideravam o peixe uma iguaria, não entendiam por que
razão os seus antepassados homéricos não o comiam, estando como estavam sempre
perto do mar. Na Ilíada (e na Odisseia) ninguém come peixe. Só carne.
Hecatombes de bois, como narrava Homero. Hábitos trazidos das estepes, onde a
alimentação do brutamontes guerreiro era feita à base de carne vermelha. A
sofisticação do peixe não era ainda para aqueles primeiros gregos.
Ao
ler a Ilíada hoje é difícil não pensar que a história não seja outra coisa que
repetição. Por muita fé milenarista que possamos ter, acaba por ser sempre a
mesma história. Afinal a nossa biologia é igual à dos gregos saqueadores de
cidades, dos troianos mortos e das troianas violadas e feitas escravas. Não
mudámos muito.
Se
estes gangues de terroristas islamitas que assolam a Europa triunfassem, como
triunfaram os gangues gregos sobre Troia, quantos mil anos demoraria a nascer
de novo a cidade?
Quantos
mil anos lhes levaria a entender que o pensamento gera riqueza e bem-estar, que
a paz é próspera, que a diferença enriquece, que as estátuas inspiram, que lei
é o mais igualitário dos instrumentos e que a mulher é metade do todo.
Quantos
mil anos demorariam a evoluir como evoluíram os gregos de facínoras a
filósofos?
Quantos
mil anos para tolerarem, como nós toleramos no nosso seio, os que nos querem
destruir?
Não
há acontecimento mais triste nas histórias da História do que o fim da cidade.
Todo o tempo e energia investidos por gerações de homens e mulheres na
organização da interação social, na invenção de tecnologias, no aprimorar do
comércio, na troca de ideias e na produção de artefactos e de arte
desperdiçados num ápice de força bruta e intolerância.
Ter
as portas abertas é não só um dever da cidade como uma necessidade para a sua
sobrevivência. A cidade fechada morre. Não há cidade sem comércio, sem o
negócio da surpresa e da diferença. Pelas portas abertas da cidade entra a
riqueza que a faz; mas entra também o cavalo. Não estarão estes novos
"gregos" montados na tolerância que amamos como aquela gente amava os
cavalos? Podemos até compreender e contextualizar os dois lados desta questão,
mas esse é um exercício que só está ao alcance de quem está na cidade, sentado
nos seus muros, olhando para fora e para dentro. Quem está fora não beneficia
desta elevação. O ponto de vista dos gangues que nos acossam é outro. Eles
apenas veem os muros que os excluem, imaginando e invejando as riquezas que
eles encerram, ao mesmo tempo que desprezam os modos da cidade: educados,
organizados, femininos, tolerantes.
Eu
sou da cidade. E embora o fascínio por Aquiles, por gangues, por feitos heroicos
ou pela beleza guerreira seja apenas um prazer literário, uma sublimação da
masculinidade que a cidade tolera pouco, é talvez chegado o tempo de suspender
a tolerância. Como os gregos clássicos, também eu gosto muito de peixe. Como
gosto de croissants ao pequeno--almoço. Morte aos "gregos".
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