Seguimos o nosso homem nos
seus truques, ele leva a televisão atrás para os seus expedientes de vedeta,
não os que fizeram levantar a saia a Marilyn, em imagem de graciosidade e
sedução, mas em imagem de palhaço triste e bom, vítima sempre da maldade
alheia. O certo é que a televisão o acompanha nesses truques. O último que vi
pareceu-me sórdido: um homem que se desloca à prisão de Évora para visitar os
amigos que lá deixou e dar assim uma lição de solidariedade e boas maneiras ao
mundo português, a quem falou, sozinho - os entrevistadores ocultos, uma ou
outra voz se ouvindo apenas, para lhe dar mais protagonismo a ele. Ficámos colados
à televisão ante o espectáculo caricato do homem só, falando só, como já tenho
visto muitos na rua, perdidos no seu mundo de alucinações.
Mas outros se ocupam dele, bem
melhor, embora me pareça que deveria já ser tabu tal tema, pelo indecoroso:
Retrato
de Sócrates pelo próprio
Público, 17/12/2015
Palavra
a José Sócrates (TVI): “Quando fui estudar para Paris, a primeira decisão que
tomei foi pedir um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos de 120 mil euros. Em
2012, a minha mãe vendeu o seu apartamento [no prédio Heron Castilho], deu-me a
parte que me devia dar [NR: 75% de 600.000 euros, o que totaliza 450.000 euros]
e isso deu-me para viver até ao final de 2012. Entre o momento que saí do
governo até ao final de 2012, quais foram as minhas fontes de rendimento?
Basicamente, a doação da casa da minha mãe.”
Palavra
a José Sócrates (Expresso, 19 de Outubro de 2013): “Quando perdi as eleições
[em Junho de 2011], telefonei à minha gerente de conta e pedi um empréstimo ao
banco de 120 mil euros. Um ano sem nenhuma responsabilidade e levando um filho
comigo. Gastei o dinheiro todo. Assim fui para Paris, em vez de, mais uma vez,
pedir dinheiro emprestado à minha mãe.”
Palavra
a José Sócrates (TVI): “A partir de 2013 comecei a trabalhar e comecei a ganhar
dinheiro [NR: no início de 2013, Sócrates assinou um contrato de 12.500 euros
mensais com a Octapharma, a que se seguiu um segundo contrato de 12.500 euros
em Maio de 2014], e ganhava razoavelmente. Mas a verdade é que em 2013, porque
o meu filho mais novo ainda estava em Paris e eu estava em Lisboa, as minhas despesas
cresceram muito, e por isso, em 2013, apesar de já estar a trabalhar, recorri a
empréstimos do meu amigo Carlos Santos Silva. Ele emprestou-me dinheiro durante
cerca de um ano, até porque quando fui detido, em Novembro [de 2014], eu já
ganhava 25.000 euros por mês e tinha a expectativa de poder pagar tudo o que
lhe devia e rapidamente.”
Palavra
à matemática: José Sócrates afirmou há dois dias na TVI – foi ele quem o disse,
não eu, nem o Ministério Público, nem o Correio da Manhã – que em ano e meio,
entre Junho de 2011 e o final de 2012, gastou 120.000 euros do empréstimo da
CGD e 450.000 euros do dinheiro da casa da mãe, o que totaliza 570.000 euros em
18 meses. José Sócrates afirmou também que só em 2014 tinha pedido três
empréstimos à Caixa Geral de Depósitos, o que credibiliza as notícias que
indicam que até à sua prisão ele contraiu mais quatro empréstimos, de 25.000,
75.000, 40.000 e 30.000 euros (total: 170.000 euros). A isso se somam pelo
menos 250.000 euros (“as contas ainda não estão completamente saldadas”,
afirmou) emprestados por Carlos Santos Silva, até à data da sua prisão. Contas
feitas, estamos a falar de 1 milhão de euros em pouco mais de três anos. Cerca
de 25.000 euros por mês.
Para
que fique bem claro: na entrevista à TVI, José Sócrates apresentou-se como um
ex-primeiro ministro sem rendimentos, que à custa de empréstimos, mãe e amigo
gastou 1.000.000 euros para tirar um mestrado em Paris. Sócrates entende que
isto não é “vida faustosa”. “Onde é que está o luxo?”, perguntou. Digamos que
para quem está alegadamente falido, o seu conceito de luxo é muito original.
Contudo, a questão não está no luxo – está no facto de a frase “tinha a
expectativa de poder pagar tudo o que devia [a Santos Silva] e rapidamente” ser
uma mentira descarada. Mesmo a receber 25.000 euros (brutos) por mês, ele
jamais conseguiria pagar rapidamente aquilo que devia com o nível de vida que
levava, até porque, como disse, se não tivesse sido preso continuaria em Paris
para tirar o doutoramento. Não é só o mundo inteiro que está contra Sócrates. É
o mundo inteiro, a lógica e a matemática.
O HOMEM QUE FALA SEMPRE SOZINHO
(A Bem da Nação)
No caso Sócrates,
o processo judicial não pode resolver tudo. Por isso, a estratégia de o deixar
a falar sozinho não chega. Há um debate político para fazer.
Já temos
acusação no caso Sócrates. Não a do Ministério Público, mas a de José Sócrates
contra a democracia e a justiça em Portugal. Ouvimo-la mais uma vez, recitada
em dois consecutivos serões televisivos, sem direito a perguntas e muito menos
a dúvidas. Sócrates nunca soube falar de outra maneira, a não ser sozinho. E
depois dele, quem ouvimos? Pouco mais do que os comentadores obrigatórios das
televisões, o Correio da Manhã, e alguns sindicatos de magistrados ofendidos. É
clara a estratégia do regime perante o caso Sócrates: deixá-lo a falar sozinho,
como aquelas pessoas estranhas que às vezes nos interpelam com alguma teoria
alucinada e que logo percebemos não valer a pena contradizer. É esta a boa
atitude? Não é.
O caso
Sócrates é grave por qualquer lado que se queira olhar para ele. Reparemos, por
exemplo, no que Sócrates afirma. O ex-primeiro ministro não se limita a
criticar os vagares da acusação, os excessos de prisão preventiva ou as
violações do segredo de justiça, que não serviriam, aliás, para distinguir o
seu caso de tantos outros. Também não lhe chega refutar ou reinterpretar o que
já veio a público dos elementos de acusação contra si. No tempo de antena da
TVI, tal como já acontecera antes, vimos um antigo primeiro ministro e ex-líder
de um dos maiores partidos do regime insinuar que foi vítima de uma perseguição
judicial encomendada pelo anterior governo do PSD e do CDS para comprometer o
PS na última campanha eleitoral. Segundo Sócrates, o PS perdeu as eleições por
causa deste caso, o que quer dizer que os resultados eleitorais de 5 de Outubro
terão sido viciados por uma encenação judicial inspirada pelo governo de então.
Depois
de quarenta anos de regime democrático e de trinta anos de integração europeia,
Portugal seria um país onde juízes e magistrados obedeceriam a instruções
recebidas de dirigentes partidários. Ora bem: ou isto é mesmo assim, e então o
actual governo e o parlamento deveriam estar a promover inquéritos à justiça e
a investigar os anteriores governantes, ou isto não é nada assim, e então todos
nos deveriam estar a explicar como é que um indivíduo com esta visão do regime
foi primeiro-ministro deste país durante seis anos, e líder de um dos grandes
partidos do regime.
Dir-me-ão:
tudo depende do processo judicial, há que aguardar. Mas o processo, acabe como
acabar, não pode resolver todas as questões. Se Sócrates for absolvido dos
crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, vamos
convencer-nos de que este é um regime monstruoso, uma falsa democracia, onde um
ex-primeiro ministro honrado foi vítima de uma perseguição judicial vilíssima,
com motivos facciosos? E se Sócrates for culpado, deveremos concluir que este é
um regime não menos monstruoso, uma democracia não menos falsa, onde um
conspirador corrupto pôde tomar e manter o poder no Estado, até a crise
financeira o derrubar? Precisamente porque qualquer dos cenários é mau, há um
debate político a fazer, seja qual for a decisão judicial.
No fim
do solo televisivo desta terça-feira, José Alberto Carvalho teve o lapso de
lembrar Nixon. Talvez haja algumas analogias entre Richard Nixon e José
Sócrates, mas a classe política americana discutiu Nixon, o Congresso
investigou-o, Nixon caiu por força das instituições e não por causa de uma
aflição financeira, e os jornalistas entrevistaram-no (veja-se o seu confronto
com David Frost). Nixon até foi perdoado pelo seu sucessor, mas não foi varrido
para debaixo do tapete, como um simples caso de polícia ou de psiquiatria.
Sócrates não pode continuar a falar sozinho.
In Observador,
18/12/2015 Rui Ramos
Todavia… José Sócrates é um espécime antigo, que os
versos de António Gedeão poderiam retratar. Demos-lhe a nossa bênção, deitemos achas na fogueira das suas
vaidades, equiparemo-lo ao Homem Nascido de Gedeão, que tal retrato bem pode
servir-lhe, nas suas ambições de riqueza e poder, nos seus complexos de
vitimização, nas suas ânsias exibicionistas...:
Fala do Homem nascido
Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci
Trago boca pra comer
e olhos pra desejar
tenho pressa de viver
que a vida é água a correr
Venho do fundo do tempo
não tenho tempo a perder
minha barca aparelhada
solta rumo ao norte
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham
nem forças que me molestem
correntes que me detenham
Quero eu e a natureza
que a natureza sou eu
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu
Com licença com licença
que a barca se fez ao mar
não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar
com licença com licença
com rumo à estrela polar
In Teatro do Mundo, 1958
Nenhum comentário:
Postar um comentário